Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


terça-feira, 6 de dezembro de 2016

UMA EXISTÊNCIA OUTRA, Isabel Maia



No passado domingo foi apresentado o livro de poemas em epígrafe.
A poeta, depois de adiar por várias décadas a publicação desta coletânea, decidiu agora separar-se destes poemas, em constante aperfeiçoamento, e dá-los ao público.
A poesia de Isabel Maia surge muito marcada pelo percurso existencial, em que a solidão, a dor e a erosão que o tempo provoca são temas predominantes. Os poemas remetem aparentemente para momentos relevantes da sua vida, no entanto, como é sabido, uma coisa é a vida escrita e, naturalmente, outra a vida vivida.

Com a autorização da autora, eis dois dos poemas, seguidos de breves comentários:

A solidão é um local desabrigado

A solidão
é um local desabrigado

que altera o voo das aves
e a cor das violetas

A solidão, considerada em abstrato, não altera nada. No entanto, para a pessoa que está só tudo poderá ser alterado. Veja-se que o eu poético, para exemplo desse estado alterado, escolheu o céu e a terra, o alto e o baixo, o animal e o vegetal: dois dos seres mais belos que o nosso mundo produz. Note-se ainda que o único abrigo que poderá existir é a terra, pois o céu também é desabrigado, fatalmente as aves terão de pousar. Talvez na haste de alguma flor, e essa união da ave com a flor dissolva a solidão.


Com os cotovelos da alma

Com os cotovelos da alma
apoio-me na varanda do 6.º andar

Pedaços de vida lá fora

da mulher que apanha cenouras
para um avental
do homem sem idade que apanha lixo
para uma saca velha
dos doentes que passeiam as dores
nos jardins do hospital

saudades cá dentro

o vidro partido daquela janela
continua à espera que o vão lá trocar
janelas nuas tinta descascada
roupa pendurada

Morava ali uma mulher
que se lançou no ar à procura de paz

Vai chover
Papéis rodopiam folhas rodopiam
no chão pardacento
o homem da saca
a mulher das cenouras
os pés dos doentes
os papéis e as folhas
todos partiram

Só eu fiquei
contigo na alma
contigo na chuva
no chão pardacento
nas folhas que giram

na tarde que morre

Poema construído a partir de fragmentes significativos do que o eu poético vê a partir de uma janela alta e daquilo que esses «pedaços de vida» evocam.
A apresentação de todas as pessoas referidas como tendo partido, as pinceladas que apresentam a vida da cidade como desumana, podendo mesmo culminar em suicídio, ou ainda a feição outonal da natureza fazem o sujeito poético pensar, quase de forma circular, nas saudades referidas no início e na ideia de finitude, de morte.
Uma pergunta ainda: Quem é ou o quê é o «tu» interpelado por «contigo»?

Sobre Isabel Maia transcreve-se da badana:

«Isabel Maia
na Escola, no Liceu, na Universidade de Coimbra, onde completou a licenciatura em Filosofia, e deixou a meio a de Jornalismo,
nasceu em Coimbra, cidade que sempre levou no coração para onde quer que fosse,
paisagens, todas, especialmente as literárias,
desde pequena que escreve, em folhas dispersas, ou em cadernos que perde,
é, sobretudo, na poesia que se revê, como um modo de ser e respirar,
daí, este livro, com décadas de atraso.»


MAIA, Isabel. Uma existência outra. Palimage, Coimbra, 2016.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

CINCO ESQUINAS, Mario Vargas Llosa


MARIO VARGAS LLOSA, 1936 (Prémio Nobel da Literatura, 2010)

A história ocorre, no Peru, nos anos da ditadura de Fujimori (1990-2000). Este é apenas referido, relevando apenas a controvérsia da sua naturalidade, pois não é absolutamente claro que tenha nascido no Peru, o que não lhe permitiria ser presidente. A figura principal em relação ao poder é um Doutor que tudo controla, incluindo o presidente.
O que está aqui em causa é o poder e a corrupção que este suscita, segundo John Dalberg-Acton: «O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente».
No romance o doutor Montesinos é aquele que verdadeiramente manda no país. Através dos meios de informação, domina os seus adversários, explorando as suas fraquezas e os seus vícios, se necessário inventados, recorrendo a chantagem e até ao assassínio.

Existem seis personagens com responsabilidades várias no desenlace.
O livro começa por estabelecer a relação homossexual entre Chabela e Marisa, mulheres de poderosos homens, a primeira de um advogado conceituado, a segunda de um industrial mineiro. Ambos ricos e respeitados pelo regime.
A relação entre as duas mulheres, amigas desde sempre, parece nascer de um caso fortuito: a necessidade de Chabela passar a noite em casa de Marisa, visto que há recolher obrigatório e, entretidas a conversar, não terem dado conta do passar do tempo. No entanto isto poderia ficar por aqui, mas a relação mantém-se e agrada-lhes.
Henrique, marido de Marisa, algum tempo atrás estivera numa orgia da qual existem fotografias. É-nos mostrado como que quase inocente, em que tivera o comportamento que tivera apenas devido a ter bebido demais e consumido drogas. O marido de Chabela virá a defendê-lo quando o caso é publicitado.
A publicação das fotografias ficará a dever-se a um jornal de escândalos, Destapes, cujo diretor – no fim deste texto transcreve-se o modo como é retratado –, fracassando um tentativa de chantagem, decide publicá-las. Surge também uma jornalista do mesmo tabloide que redige o texto e virá a ter, alegadamente, a responsabilidade da queda do regime.

Há nesta ficção muito de realidade, nomeadamente na existência de um doutor Montesinos, que terá sido o braço direito do ditador Fujimori. O poder é visto como presa fácil para homens medíocres e sem escrúpulos, o jornalismo, principalmente o dos tabloides é apresentado como uma arma de arremesso desse poder corrupto e manipulador.

A reduzida estatura dos dois jornalistas de escândalos, Rolando Garro e Retaquita, será a assunção, por M.V.L., da menoridade deste jornalismo. No entanto é Retaquita que, apesar da sua insignificância, apeia do poder o homem forte do regime e, segundo o romance, o seu títere, Fujimori, sem outra arma que o dito jornalismo menor, ainda que aproveitando a caixa de ressonância do jornalismo mais sério. O livro poderá levar-nos a pensar que atualmente o jornalismo tem perdido o seu papel informativo em detrimento do entretenimento.
Em contrapartida os poderosos são muito bem vestidos de corpo: os homens elegantes e as mulheres belíssimas.

Retrato do diretor do Destapes visto pelos olhos de Enrique Cardenas, Quique:
«O seu andar tarzanesco, esbracejando e rebolando-se como o rei da selva? O sorrisinho tatoneiro que lhe encolhia a testa sob aqueles cabelos lambidos e colados ao crânio como um capacete metálico? As calças apertadas de veludo cotolê que cingiam como uma luva o corpinho apertado? Ou aqueles sapatos amarelos com grossas solas para fazer crescer a sua figura? Tudo nele lhe pareceu feio e piroso.» …
«Tinha uma vozinha estridente e parecia estar a troçar, com uns olhos pequeninos e movediços, um corpinho raquítico, e Enrique reparou até que cheirava mal… usava casaquinho azul muito cintado e uma gravata furta-cores que parecia estrangulá-lo. Tudo nele era minúsculo, incluindo a voz.» (p. 21)

Da história desta personagem, o narrador adverte-nos de que foi adotado e que fugiu quando os pais adotivos lhe revelaram não serem os seus pais biológicos. Rouba-lhes as economias e desaparece, vivendo de expedientes até encontrar o filão do jornalismo de escândalos.
Repare-se que o uso do diminutivo acrescenta um ar caricatural à já reduzida figura deste homem.
É também de forma caricatural que é apresentada Retaquita, significando esta alcunha, atarracadita.

Importa referir, embora não diga respeito diretamente a este livro, e não pretendendo acrescentar nenhum juízo de valor, apenas um facto, que M. V. Llosa perdeu a eleição para a presidência do Peru, precisamente, contra Fujimori.

LLOSA, Mario Vargas. Cinco Esquinas. Quetzal, 2016

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

TERRA FRIA, Ferreira de Castro


Ferreira de Castro (Ossela - Oliveira de Azeméis, 1898; Porto, 1974)


Ferreira de Castro (1898-1974), no posfácio, em relação à sua experiência de vida, afirma: «…a melhor [aquisição] foi compreender e amar o meu semelhante. Compreendê-lo nas suas fraquezas e nas suas forças, nos seus erros e nos seus acertos e amá-lo nas suas virtualidades, nas suas maravilhosas realizações e nos heroísmos sem história que a vida quotidiana, a miséria, as aspirações sempre adiadas, impõem a tantos deles com implacável frequência…»
Pois é isto que ele faz pelos habitantes do Barroso (região formada pelos concelhos de Montalegre e Boticas), onde esteve várias vezes. Neste romance retrata a heroicidade desse povo perante a miséria extrema e o isolamento. Homens e mulheres que, nos anos trinta do século passado, ante uma natureza madrasta, subsistem no limite, no meio das pedras e do frio, quase que apenas com recurso à criação de algum gado, com o qual dormem paredes meias e à magra produção de vegetais nos parcos lameiros.
Ainda segundo o autor, o referido isolamento produz evolução diferente e singular dos povos. É pois essa singularidade e o heroísmo do homem anónimo que este livro celebra. Nesta perspectiva podemos até afirmar que este heroísmo remete já para uma espécie de personagem tipo, ainda que sem envolvimento marcado com a emancipação social e a consciência política do operário, rural ou fabril, antecipando as figuras protagonistas do neorrealimo. Um dos temas presentes é o das relações de poder: o cacique e o povo subserviente, sem, no entanto, surgir ainda de forma explícita a chama da revolta.

Espécie de resumo:

Leonardo e Ermelinda, casados há três anos e ainda jovens, são os protagonistas deste romance. Ele, de estatura mediana, muito forte, rosto crestado, lábios grossos, olhos pestanudos, projeta prosperar, abrindo uma venda (misto de taberna e mercearia), para poder deixar o seu ofício de peliqueiro que pouco rendimento lhe dá. Ela é a rapariga mais formosa lá do lugar, gosta do marido e apoia-o, até que…
Santiago, um «americano», regressa à terra natal, Padornelos – Montalegre. Viúvo e com dinheiro constrói casa abastada e torna-se o homem mais importante do lugarejo, mesmo mais importante do que o padre. O leitor poderá interrogar-se porque é que, com tanto dinheiro, se vai instalar numa tão insignificante localidade. Naturalmente, só aqui poderia adquirir a importância referida, pois mesmo em Montalegre havia vários caciques de longe superiores, mais ricos, quer em bens materiais, quer em conhecimento e erudição, e há ainda a questão, apenas indiciada, de que regressou ao berço em conflito com a família da mulher americana por se ter apropriado de mais do que seria seu de direito.
Este americano dá emprego a muita gente, principalmente na lavoura e na construção civil, através da mãe, que de tia Rita passou a sr.ª Rita, contrata uma criada que passado um tempo foi mandada para Lisboa porque andava «pesada e doentota», obviamente para esconder a gravidez. É a vez de «Linda» ser contratada. Resiste aos primeiros avanços do patrão e pensa não voltar àquela casa. Mas, convencida pela sr.ª Rita e porque, de facto, não tinha acontecido nada, regressa e também acaba por ser seduzida e engravida.
Por essa altura, a conselho do americano, Ermelinda afirma querer ter um filho, e como já lá vão três anos e não engravidou, convence Leonardo de que precisam de ajuda. Deslocam-se à Ponte da Misarela, onde passam a noite sem falar até que ao amanhecer interpelem o primeiro homem que passa, convidando-o para padrinho da criança – naturalmente uma reminiscência de um rito pagão.
Quando ela fica impedida de trabalhar, uma nova criada é admitida, Guida, filha da picheleira. Para evitar problemas, Santiago empresta dinheiro a Leonardo para abrir a tão almejada venda, fixando assim Linda a esse espaço onde para além de tratar do filho terá que atender a clientela, enquanto Leonardo continua o negócio das peles.
Mas, antes de se vir embora de casa de Santiago, este convence-a de que ainda gosta dela e combina um sinal para se encontrarem. Ora o sinal não surge durante meses e Linda vem a saber, por frequentadores da taberna, que o que logo suspeitara é verdade: Guida está grávida do patrão. Quando finalmente o sinal surge, desgostosa com tudo o que acontecera, pondera se deverá comparecer ou não. Acaba por ir, mas o encontro corre mal, pois Ermelinda mata o americano com uma sacholada.
Chegada a casa confessa a Leonardo que matou Santiago, mentindo-lhe ainda ao dizer-lhe que ele tentou avanços que ela não permitiu. Este, num assomo de orgulho e honra viril, considerando que se ela não o tivesse feito, fá-lo-ia ele, decide assumir a culpa e fugir para Espanha, onde encontra abrigo em casa de Iglésias, galego para quem ele comprava as peles.
A filha de Iglésias está embeiçada por Leonardo, do que este vem a suspeitar mais tarde, mas em que não quer acreditar.
Leonardo visita a mulher e o filho e ninguém compreende porque é que não dá cabo dela, pois todos já sabem que o menino é do americano, mas não sabem que ele não suspeita sequer disso. Naturalmente era inevitável que o viesse a saber. Nesse momento dirige-se a casa para matar Ermelinda. Mas a Guarda Republicana que o procura pela morte de Santiago apanha-o perto da fronteira e leva-o para Montalegre. Quando Ermelinda sabe, decide finalmente retratar-se e assume a culpa. É presa e vai cumprir a sua pena.
Leonardo volta para Espanha, casa com Rosalía. Pela morte do genro torna-se dono do negócio deste e pode dizer-se que é um homem próspero.
O romance acaba com a demonstração de que o sonho e a ambição de Leonardo não morreram. Artur Lopes, velho conhecido e amigo, que emigrara e a quem a vida não correra muito bem (faz aqui contraponto com Santiago), procura-o para tentar reativar o sonho de descobrir um hipotético tesouro enterrado nas pedras no Larouco. Leonardo começa por recusar, usando os mesmos argumentos que o sogro usara quando lhe pedira sociedade para tal empresa, mas acaba por ceder, pedindo que não diga nada a sua mulher, Rosalía.
O romance dá-nos ainda, entre outras, imagens de um Portugal passado com gestão comunitária do gado, a «vezeira», em que  cada um pastoreia à vez o gado de todos, as chegas de toiros, organizadas para gáudio do povo e que frequentemente resultavam em pancadaria.

Ainda uma palavra sobre as cores predominantes. O branco, a luz, na aldeia de Padornelos apenas existe na casa de Santiago, em oposição às de todos os outros que são negras por fora e por dentro, praticamente sem janelas. Assim é também na natureza circundante. Ora o escuro das pedras, ora a brancura imaculada da neve. Em alguns momento quer o negro quer o branco são símbolos de morte.

CASTRO, Ferreira de. TERRA FRIA.  Guimarães Ed. s/d, 10.ª edição.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

AS VIÚVAS DE DOM RUFIA, Carlos Campaniço




A história enraíza na tradição do pícaro, no Lazarillo de Tormes, passando pelo Malhadinhas de Aquilino, até, v.g., nos recentes romances de Paulo Moreiras: A demanda de D. Fuas Bragatela e O ouro dos corcundas.
Firmino Pote, um alentejano da aldeia de Fernão Baixo, nascido para trabalhar a terra de sol a sol, consegue fugir à tirania da pobreza através de muita imaginação, uma boa figura e ausência de escrúpulos,  ainda que ocasionalmente seja sobrepujado por uma educação católica que o faz temer os símbolos da religião.
O livro começa com a descoberta da morte de Firmino, dito Dom Rufia, que imediatamente se percebe resultar de um crime, dado que foi baleado.
O caricato da história é que, ao longo da noite do velório, se vão apresentando várias viúvas: Domitília, de Almodôvar; Acélia, de Moura; Joaquina Fialho, casado, dita Joaquinita, de Alvito; Maria de Jesus, de Beja; (Flôr do Carmo, de Beja, que não vem enganada, mas cobrar os seus serviços); D. Cremilde, de Palmela, que se apresenta com o seu marido; Mariana, das redondezas de Viana do Alentejo, única à qual confessou a sua vida dupla; Antónia do Preto, de Satara, aldeia próxima de Fernão Baixo, que se vem a saber o enganou a ele; e ainda uma personagem que já de manhã, carregada de preto, surge e logo se perde na multidão. Acresce a possibilidade, que fica indiciada na posição de Armindo Costureira na fila das viúvas, assim como no final o seu aparecimento no cortejo fúnebre vestido de mulher, de existir uma relação homossexual.
A primeira viúva, que de facto era viúva, Domitília, foi a que lhe forneceu as asas para voar pelo Alentejo, tentando ser rico e conquistar as outras viúvas, pois disponibiliza-lhe o carro do defunto e dá-lhe meios, roupas, dinheiro, para poder viajar. As ausências justifica-as Dom Rufia com a mãe doente que já não existe. Numa outra jogada de mestre apodera-se das jóias de Domitília e passa a ser ourives em Moura. Depois vem a ser médico em Alvito, advogado em Beja, diplomata em Palmela… um homem que é analfabeto.
Todas estas histórias e ainda outras da juventude do finado são apresentadas no velório, contadas pelos próprios intervenientes ou pela tia de Dom Rufia, que o criara.
As histórias, muitas são autênticas anedotas, valem bem a leitura. A de quem foi o matador até se esquece. Mas no fim, quando nos surge a pergunta, a resposta aparece e não é o que esperávamos depois de vermos tantas mulheres enganadas.
No entanto, em relação à estratégia narrativa, salvo melhor opinião, não parece ser muito  lógica ao nível da validação verídica.
Vejamos, o narrador, numa espécie de prefácio, assume-se como um familiar («…um longínquo tio que me corre nas veias…», pág. 11) de Firmino Pote, i.e., Dom Rufia, que por via de seu avô, Attílio Pote, conhece a história, recolhida por este último durante a sua passagem por Fernão Baixo, em onze dias, durante a lua de mel. Testemunhos recolhidos através do tio de Firmino, Homero Dente d’Alho, que acompanhou o sobrinho em algumas das suas aventuras, e de vizinhos. Homero não sabia tudo, mesmo que Firmino lhe tivesse contado pormenorizadamente como tinha conquistado as suas viúvas. Ora, na narração assume-se frequentemente como omnisciente – que tudo sabe, mesmo os pensamentos das personagens –, e ocorrem mesmo diversas focalizações internas, – a história a ser contada pelos olhos de uma personagem –, que não encaixam com esta estratégia de narrador editor.
Ainda sobre a narração não é facilmente aceitável que no princípio o narrador afirme que «eu» cosi os bocados da história e pede desculpa por ter de o fazer «nas palavras que possa», e depois em vários momentos passar para um nós: «…a nossa fonte, diga-se com justiça, nunca foi moralista.», pág. 152: «…viemos [quem?] mais tarde a ter a informação de como…», pág. 187.
Importa, talvez, referir ainda a personagem de Juan de los Fenómenos, que aparece para reforçar a ubiquidade de Firmino. Na sua deambulação pelo Alentejo à cata de fenómenos, apercebe-se de que encontra o mesmo homem em vários lugares e com diferentes estatutos. No fim, antes de regressar à sua terra natal, o Chile, interessa-se por Dom Rufia e procura deslindar mais este fenómeno, mas não tem sucesso, pois o tio, a partir do qual ele pretende conseguir informação, apercebe-se da estratégia daquele e não fala. Levanta o problema se o caso de Pote não é mais do que um dos muitos fenómenos que Juan investiga, como unhas que crescem da noite para o dia, olhos que mudam de cor, etc.

CAMPANIÇO, Carlos. As viúvas de Dom Rufia. Casa das Letras, 2016.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

DIÁRIO DE UMA FLOR, Maria Augusta Ribeiro



Este livro, conforme o  próprio título indica, é apresentado como se fosse o diário de uma flor, uma rosa – naturalmente é símbolo de mulher. Desde o seu projecto de aparecimento até à sua morte, ao seu desaparecimento. Obteve o Prémio de Revelação do Concurso de Poesia S.N.I. 1966.
Escritores há de que dificilmente ouvimos falar, ou porque não se notabilizaram, ou simplesmente porque muitas vezes outros vultos coetâneos os obscureceram. Ainda assim a autora escreveu também: Suavidade, 1950 e Litoral do Sonho, 1957.

Reproduzo um dos poemas mais pequenos:

…De que cor serei?

Faz-me sofrer um pouco esta ansiedade…

Serei branca?…

Pálida?…

Vermelha?…



Quero

Quero ser  vermelha!

RIBEIRO, Maria Augusta. Diário de uma flor. Edições Panorama, 1968. (p.11)

quarta-feira, 2 de março de 2016

O RUMOR DAS MÁQUINAS, Rui Miguel Fragas




Rui Miguel Fragas é pseudónimo literário de Fui Féteira. O autor nasceu em 1964, em São Miguel de Poiares, distrito de Coimbra. Naturalmente o pseudónimo escolhido mantém o seu nome próprio e vai buscar os outros dois à sua terra natal, na qual abundam topónimos relacionados com fragas. É professor de Filosofia e homem de teatro, tendo sido co-fundador do Pateo das Galinhas – Teatro de Bico, sediado na Figueira da Foz.

Este é o seu terceiro livro publicado. Os dois anteriores foram publicados em 2014 e 2015, respetivamente O NOME DAS ÁRVORES e NÃO SEI SE O VENTO, ambos pela Poética Edições.
Com este novo livro, apresentado na Figueira da Foz em 27 de fevereiro pp., obteve o prémio Aldónio Gomes, patrocinado pela Universidade de Aveiro. Esta obra foi ilustrada pela atriz do Pateo Jovem, Sofia Perié Barros, inspirada nos desenhos de máquinas de Leonardo da Vinci.
Usa uma linguagem fresca, ainda que marcada por uma estruturação complexa e algo críptica: frequentemente com conceitos paradoxais. Os poemas vivem muito de ritmos e sonoridades bem conseguidas, que ressaltam à primeira de uma leitura em voz alta, como deve ser lida toda a poesia.
Aqui fica um exemplo:

Com o cérebro nas mãos
o bibliotecário contempla os livros que erguem as paredes do mundo:
livros que se abrem para outros livros que se abrem em direção a um
sentido que se oculta. O cérebro do bibliotecário

é uma composição de máquinas em perpétuo movimento, uma
máquina no interior de outras máquinas

a roda lenta de uma máquina imóvel sobre o quadriculado da alma, o
eixo de uma roda por entre as linhas cruzadas das mãos. E a biblioteca
é um espaço finito de livros infinitos,

o incompleto alfabeto do pensamento, a prometida e improvável
enciclopédia

e cada entrada é o inicio e o fim de um percurso que se estende mais
para além, a serpente eterna das palavras a sibilar grafias novas de
antigas ideias

porque é uma e una a língua que é bífida e o rosto de uma folha é
o verso de outra. Sopra lá longe uma linguagem universal

a sombra fugaz do que nunca será dito e ainda assim nunca deixou de
se dizer. Sopram reminiscências de todos os livros, retalhos

dos livros queimados nas fogueiras dos tempos

dos livros proscritos e enterrados nos túmulos de todos os homens
proscritos

e de pergaminhos e tábuas e manuscritos
que foram caminhos

e agora são pó dos caminhos

por entre a aragem dos livros que um dia serão escritos e dos que
nunca o serão, rascunhos de fundos alicerces fortuitas metamorfoses e
ruínas futuras

e livros só sonhados, essa matéria palpável e verídica que une o
mundo e o estilhaça

e lógicas e fórmulas que serão escritas por homens e máquinas à
superfície da lua e que se perderão no espaço e se encontrarão algures
para se voltarem a perder

e os últimos poemas, límpidos e obscuros, que os últimos homens
escreverão sobre a areia dos desertos do futuro.

Cruzam-se causas que são efeitos, peixes com lagos por dentro, flores
e frutos a dizerem árvores inteiras. Os labirintos são o centro dos
labirintos

porque é no centro que se descobre a lonjura do centro. Cruzam-se
tempos e seiva e espaços no quadriculado da alma

cruzam-se caminhos
e sangue e palavras nas linhas das mãos que seguram ainda o cérebro do
bibliotecário

ainda a contemplar os livros que erguem e derrubam as paredes do
mundo.

Notas:

Veja-se a analogia do título com a expressão, quase lugar-comum, “com o coração nas mãos”. Instaura a lógica da razão em detrimento da da emoção. Segue-se a constatação de que o cérebro é a máquina perfeita (aquela com que todos os engenheiros sonham): máquina de máquinas feita, em perpétuo movimento que roda, gira, move-se, mas sem atrito, sem desgaste: “imóvel sobre o quadriculado da alma”.

A biblioteca que apesar da destruição de bibliotecas, bibliotecários. ou de livros individuais, que apesar sua finitude, ainda assim remete para o infinito… e os livros que alberga, protege, colecciona são capazes de derrubar paredes e, paradoxalmente, a palavra é mais duradoura do que a pedra (em que muitas vezes foi escrita).

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

O RAPAZ DOENTE, Gabriel Mariano


Serve este livrinho também de pretexto para falar da Colecção Imbondeiro, que valorizou a literatura colonial, e em que muitos dos escritores africanos, hoje incontornáveis, viram publicadas as suas obras, nomeadamente Luandino Vieira (pseudónimo de José Vieira Mateus da Graça, n. em 1935),

A coleção, editada em Sá da Bandeira – atual Lubando – Angola tem pelo menos 68 números e foi dirigida por Garibaldino de Andrade (1914-1970) e Leonel Cosme (n. 1934). Divulgou obras de autores das ex-colónias portuguesas e também do Brasil mesmo do continente.


Gabriel Mariano (pseudónimo de José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002).

Transcreve-se da nótula inserida n’O Rapaz Doente (1963):

«Gabriel Mariano é natural de Vila da Ribeira Brava (S. Nicolau), onde nasceu em 1928. Tirou o curso liceal em S. Vivente e o curso de Direito na Universidade de Lisboa. Desempenha as funções de Conservador do Registo Predial em S. Tomé. Colaborador do boletim “Cabo Verde” e da revista “Claridade”,  tem ainda poemas e contos dispersos por vários jornais. Participou com uma comunicação nos Colóquios de Estudos Cabo-Verdianos que em 1959 se realizaram em Lisboa sob os auspícios da Junta de Investigações do Ultramar.»

Posteriormente publicou, v.g.: Vida e Morte de João Cabafume (1976).


O RAPAZ DOENTE
Júlio, um rapaz da Praia, vem a S. Vicente, enviado pelo marido de D. Maninha, na tentativa de obter tratamento para uma doença contagiosa não mencionada (provavelmente tuberculose). A sua doença terá tido origem em S. Tomé onde as condições de trabalho eram inenarráveis. Conta-nos as diligências e o medo de D. Maninha- Por um lado quer obsequiar a vontade do marido, por outro teme que, se der guarida por uma noite que seja a Júlio, os seus filhos possam ser contagiados.
Da triste narração fica também a hipocrisia das relações entre os mais afortunados e os pobres, que aceitam resignados o seu destino, não tendo estes outra hipótese senão vaguear, possivelmente contagiando outros, e morrer na solidão.

Diz o enfermeiro a quem D. Maninha solicita ajuda:
«- Sabe, minha senhora, a culpa não é nossa… São ordens… E ia acrescentando pesaroso que todos os dias apareciam casos como aquele: tudo quanto se fazia era dar consulta e receitar. Se o doente pudesse tratava-se, se fosse pobre… paciência.»

MARIANO, Gabriel. O Rapaz Doente. Imbondeiro,  1963.