Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


terça-feira, 6 de dezembro de 2016

UMA EXISTÊNCIA OUTRA, Isabel Maia



No passado domingo foi apresentado o livro de poemas em epígrafe.
A poeta, depois de adiar por várias décadas a publicação desta coletânea, decidiu agora separar-se destes poemas, em constante aperfeiçoamento, e dá-los ao público.
A poesia de Isabel Maia surge muito marcada pelo percurso existencial, em que a solidão, a dor e a erosão que o tempo provoca são temas predominantes. Os poemas remetem aparentemente para momentos relevantes da sua vida, no entanto, como é sabido, uma coisa é a vida escrita e, naturalmente, outra a vida vivida.

Com a autorização da autora, eis dois dos poemas, seguidos de breves comentários:

A solidão é um local desabrigado

A solidão
é um local desabrigado

que altera o voo das aves
e a cor das violetas

A solidão, considerada em abstrato, não altera nada. No entanto, para a pessoa que está só tudo poderá ser alterado. Veja-se que o eu poético, para exemplo desse estado alterado, escolheu o céu e a terra, o alto e o baixo, o animal e o vegetal: dois dos seres mais belos que o nosso mundo produz. Note-se ainda que o único abrigo que poderá existir é a terra, pois o céu também é desabrigado, fatalmente as aves terão de pousar. Talvez na haste de alguma flor, e essa união da ave com a flor dissolva a solidão.


Com os cotovelos da alma

Com os cotovelos da alma
apoio-me na varanda do 6.º andar

Pedaços de vida lá fora

da mulher que apanha cenouras
para um avental
do homem sem idade que apanha lixo
para uma saca velha
dos doentes que passeiam as dores
nos jardins do hospital

saudades cá dentro

o vidro partido daquela janela
continua à espera que o vão lá trocar
janelas nuas tinta descascada
roupa pendurada

Morava ali uma mulher
que se lançou no ar à procura de paz

Vai chover
Papéis rodopiam folhas rodopiam
no chão pardacento
o homem da saca
a mulher das cenouras
os pés dos doentes
os papéis e as folhas
todos partiram

Só eu fiquei
contigo na alma
contigo na chuva
no chão pardacento
nas folhas que giram

na tarde que morre

Poema construído a partir de fragmentes significativos do que o eu poético vê a partir de uma janela alta e daquilo que esses «pedaços de vida» evocam.
A apresentação de todas as pessoas referidas como tendo partido, as pinceladas que apresentam a vida da cidade como desumana, podendo mesmo culminar em suicídio, ou ainda a feição outonal da natureza fazem o sujeito poético pensar, quase de forma circular, nas saudades referidas no início e na ideia de finitude, de morte.
Uma pergunta ainda: Quem é ou o quê é o «tu» interpelado por «contigo»?

Sobre Isabel Maia transcreve-se da badana:

«Isabel Maia
na Escola, no Liceu, na Universidade de Coimbra, onde completou a licenciatura em Filosofia, e deixou a meio a de Jornalismo,
nasceu em Coimbra, cidade que sempre levou no coração para onde quer que fosse,
paisagens, todas, especialmente as literárias,
desde pequena que escreve, em folhas dispersas, ou em cadernos que perde,
é, sobretudo, na poesia que se revê, como um modo de ser e respirar,
daí, este livro, com décadas de atraso.»


MAIA, Isabel. Uma existência outra. Palimage, Coimbra, 2016.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

CINCO ESQUINAS, Mario Vargas Llosa


MARIO VARGAS LLOSA, 1936 (Prémio Nobel da Literatura, 2010)

A história ocorre, no Peru, nos anos da ditadura de Fujimori (1990-2000). Este é apenas referido, relevando apenas a controvérsia da sua naturalidade, pois não é absolutamente claro que tenha nascido no Peru, o que não lhe permitiria ser presidente. A figura principal em relação ao poder é um Doutor que tudo controla, incluindo o presidente.
O que está aqui em causa é o poder e a corrupção que este suscita, segundo John Dalberg-Acton: «O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente».
No romance o doutor Montesinos é aquele que verdadeiramente manda no país. Através dos meios de informação, domina os seus adversários, explorando as suas fraquezas e os seus vícios, se necessário inventados, recorrendo a chantagem e até ao assassínio.

Existem seis personagens com responsabilidades várias no desenlace.
O livro começa por estabelecer a relação homossexual entre Chabela e Marisa, mulheres de poderosos homens, a primeira de um advogado conceituado, a segunda de um industrial mineiro. Ambos ricos e respeitados pelo regime.
A relação entre as duas mulheres, amigas desde sempre, parece nascer de um caso fortuito: a necessidade de Chabela passar a noite em casa de Marisa, visto que há recolher obrigatório e, entretidas a conversar, não terem dado conta do passar do tempo. No entanto isto poderia ficar por aqui, mas a relação mantém-se e agrada-lhes.
Henrique, marido de Marisa, algum tempo atrás estivera numa orgia da qual existem fotografias. É-nos mostrado como que quase inocente, em que tivera o comportamento que tivera apenas devido a ter bebido demais e consumido drogas. O marido de Chabela virá a defendê-lo quando o caso é publicitado.
A publicação das fotografias ficará a dever-se a um jornal de escândalos, Destapes, cujo diretor – no fim deste texto transcreve-se o modo como é retratado –, fracassando um tentativa de chantagem, decide publicá-las. Surge também uma jornalista do mesmo tabloide que redige o texto e virá a ter, alegadamente, a responsabilidade da queda do regime.

Há nesta ficção muito de realidade, nomeadamente na existência de um doutor Montesinos, que terá sido o braço direito do ditador Fujimori. O poder é visto como presa fácil para homens medíocres e sem escrúpulos, o jornalismo, principalmente o dos tabloides é apresentado como uma arma de arremesso desse poder corrupto e manipulador.

A reduzida estatura dos dois jornalistas de escândalos, Rolando Garro e Retaquita, será a assunção, por M.V.L., da menoridade deste jornalismo. No entanto é Retaquita que, apesar da sua insignificância, apeia do poder o homem forte do regime e, segundo o romance, o seu títere, Fujimori, sem outra arma que o dito jornalismo menor, ainda que aproveitando a caixa de ressonância do jornalismo mais sério. O livro poderá levar-nos a pensar que atualmente o jornalismo tem perdido o seu papel informativo em detrimento do entretenimento.
Em contrapartida os poderosos são muito bem vestidos de corpo: os homens elegantes e as mulheres belíssimas.

Retrato do diretor do Destapes visto pelos olhos de Enrique Cardenas, Quique:
«O seu andar tarzanesco, esbracejando e rebolando-se como o rei da selva? O sorrisinho tatoneiro que lhe encolhia a testa sob aqueles cabelos lambidos e colados ao crânio como um capacete metálico? As calças apertadas de veludo cotolê que cingiam como uma luva o corpinho apertado? Ou aqueles sapatos amarelos com grossas solas para fazer crescer a sua figura? Tudo nele lhe pareceu feio e piroso.» …
«Tinha uma vozinha estridente e parecia estar a troçar, com uns olhos pequeninos e movediços, um corpinho raquítico, e Enrique reparou até que cheirava mal… usava casaquinho azul muito cintado e uma gravata furta-cores que parecia estrangulá-lo. Tudo nele era minúsculo, incluindo a voz.» (p. 21)

Da história desta personagem, o narrador adverte-nos de que foi adotado e que fugiu quando os pais adotivos lhe revelaram não serem os seus pais biológicos. Rouba-lhes as economias e desaparece, vivendo de expedientes até encontrar o filão do jornalismo de escândalos.
Repare-se que o uso do diminutivo acrescenta um ar caricatural à já reduzida figura deste homem.
É também de forma caricatural que é apresentada Retaquita, significando esta alcunha, atarracadita.

Importa referir, embora não diga respeito diretamente a este livro, e não pretendendo acrescentar nenhum juízo de valor, apenas um facto, que M. V. Llosa perdeu a eleição para a presidência do Peru, precisamente, contra Fujimori.

LLOSA, Mario Vargas. Cinco Esquinas. Quetzal, 2016