Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


domingo, 23 de setembro de 2018

quando o mar trabalha, ahcravo gorim

MEMÓRIAS. Mantê-las ou repudiá-las!?


O autor homenageia a memória dos antepassados através das suas memórias em fotografias que vão de 1972 ao final dos anos 90.
Estas memórias são entretecidas com textos poéticos de grande simplicidade que constroem uma espécie de narrativa em que uma mulher da serra desce à praia. Esta vai sendo impregnada por vários instantâneos muito nítidos da vida destes seus irmãos da areia, gente quase anónima mas real. Mas logo se afasta. Volta à terra alta, mais sábia, mais conhecedora dos usos e costumes de seus irmãos lavradores do mar, e também consciente da finitude de ambos.

Com a devida vénia e autorização, aqui fica a capa e contracapa,
assim como um dos textos e a fotografia que o inspira:

este rosto vou deixo em testamento
riqueza única amealhada
em vida

sou todos os que foram
fui todos os que serão
destino com porta virada para o mar

este rosto vou deixo
de ser eu
Pescador da Xávega

este rosto vos deixo
cuidai de não o esquecer



Obrigado, António Cravo por nos fazer reviver um mundo que a ampulheta grão a grão desvanece.


Aqui fica um agradecimento:


Sou aquele que olha
e chora as vidas
perdidas, esquecidas
no tempo,
pelo tempo,
pelos vivos que
mais mortos estão
do que os falecidos
que não recordam
ou não querem lembrar.

Hoje, não valorizamos os nossos avós, porque, na nossa ignorância e insignificância, na nossa ânsia de viver e de renegar um passado incómodo, custa-nos admitir que vidas sofridas, às vezes numa miséria extrema, poderão ter sido mais interessantes do que aquelas que agora, arrogantemente, vivemos, julgando-nos superiores.
Naturalmente que quem gaba os feitos dos seus avós, gaba os feitos de outrem. Mas não há nenhuma ideia de pertença e maior orgulho do que tal fazer. 




CRAVO, António. quando o mar trabalha, 2018. Edição de autor.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

NATAS DO CÉU, Maria Laranjeira e Ana Gentil

SUSPIROS

Batem-se as claras em ponto de nuvem
e juntam-se algumas lágrimas
de final de tarde.
Enquanto o fogo arde,
suspira-se suavemente,
para não tornar a massa pesada.
Depois reparte-se esta
em pedacinhos etéreos,
que vão ao forno
em forma untada ao de leve,
e espera-se pacientemente
que façam crescer água na boca
para melhor se dissolverem
no imaginário.
Consomem-se com o nascer da lua,
sem deixar arrefecer.


LARANJEIRA, Maria; GENTIL, Ângela. NATAS DO CÉU: Poesia de comer e chorar por mais. (p. 87).
Para quem ama a culinária, a degustação, a destrinça de sabores, um livro bem temperado de um erotismo contido, mas assumido.