Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


domingo, 22 de fevereiro de 2015

BASTARDOS, Francisco Moita Flores



Histórias de gente que predominantemente é conhecida por alcunhas e que mais do que bandidos, salvo raras exceções, são pessoas empurradas para o crime pela sua própria condição social ou até pelo acaso, v.g., no consumo de drogas.
Perpassa por todo o livro uma visão negativa do que a prisão faz aos seus pensionistas. Há muito que se quer que as prisões sejam lugares de recuperação para a sociedade dos detidos, mas o que acontece com frequência é que aqueles que por lá passam, quando saem voltam a fazer o mesmo, funcionando aquela como uma escola de refinamento de vícios e de crimes.
Um dos presos, principal narrador, reflete sobre o que leva alguém ao crime e sobre modo como a sociedade encara aqueles que por ele enveredam:
«Não sei onde está a origem do verdadeiro mal. Mas o que se passa nas cadeias está mesmo mal.
Eu só conheço esta e a de Monsanto, mas a ideia que tenho é que nos metem aqui por castigo e, sobretudo, por vergonha. Escondem-nos dos olhos do mundo por vergonha. Assim como se fôssemos leprosos. Mas não é por nos esconderem que a lepra acaba.» (p. 129)
Também é aflorada a vertente do sofrimento dos familiares dos presos, principalmente mães e esposas.
É interessante e rápido ler este pequeno livro de Moita Flores para perceber melhor esta a relação entre polícias e os protagonistas de diversos crimes, principalmente assassínios e furtos / roubos, assim como dos consumidores de drogas.
A nível linguístico temos acesso a um grande conjunto de alcunhas, que facilmente se percebe a sua motivação. Os principais alvos destas alcunhas são defeitos físicos, actividade criminosa, proveniência geográfica ou familiar, preferências musicais, assim como sexuais.
Alguns exemplos: Zé Bexigoso, Chico Podre; Rodas Baixas (carteirista); Francês, Açoriano; Quico Milongas, Garganta Funda.

FLORES, Francisco Moita. Bastardos. Difel, 1989.
Sobre Moita Flores - Portal da Literatura.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O COMBOIO DOS ÓRFÃOS, Christina Baker Kline



A partir de factos verídicos a autora narra uma possível vida de uma menina irlandesa que emigra com os pais para os Estados Unidos da América. Mostra-nos o seu percurso de dificuldades ainda na Irlanda – o pai bebe em demasia e a mãe não consegue organizar a vida doméstica –, seguido da miséria nos EUA, onde, depois da morte do pai, se vê sozinha e indigente, até ao comboio dos órfãos.
O comboio dos órfãos foi uma estratégia adotada pelas autoridades para tirar das ruas de Nova Iorque crianças abandonada e evitar que caíssem na via da depravação e do crime. As crianças, levadas para estados do interior, eram oferecidas a quem lhes quisesse dar um lar. A intenção era boa, mas facilitava também o abuso.
Numa das paragens do comboio a protagonista é escolhida por uma família sem filhos que a recebe apenas para explorar o seu trabalho, a mão de obra grátis na indústria de confeção feminina. Esta família vai à falência com a Grande Depressão e literalmente devolve-a à Children Aid. É então entregue a uma família de agricultores que vivem quase que apenas como caçadores e recoletores, mas que a deixam frequentar a escola. Não deixa de ser escravizada aqui, tratando de toda a lida da casa, pois a mulher do lavrador pouco mais faz do que permanecer na cama e procriar, prole de que a protagonista cuida como pode. O lavrador num dia de grande nevão tenta violar a menina, então com dez anos. É expulsa da barraca miserável onde vivem com pouco mais que a roupa que veste. Dirige-se à escola, onde a professora sempre fora amável para com ela. A professora é na sua salvação. Hospedada em casa de uma senhora da terra consegue que esta apoia Niamh. Orienta a sua recuperação e responsabiliza a autoridade tutelar local e descobrindo mesmo a solução para Niamh/Dorothy ao apresentá-la a um casal de amplos meios que a vem a tomar a seu cargo. Mais tarde muda o nome para Vivian e gere o armazém dos Nielsen, seus pais adotivos, com eficiência e dedicação. A partir daqui a sua vida foi basicamente feliz, sem grandes sobressaltos.
Casa-se com um rapaz que conhecera no comboio dos órfãos e que foi o seu grande amor, mas que vem a perder a vida na guerra, deixando-a grávida. Incapaz de lidar com mais esta perda, dá a sua menina para adopção. Mais tarde vem a casar-se com o melhor amigo do seu primeiro marido, mas não têm filhos por decisão de Vivian.
No presente da narrativa todas as histórias do passado estavam enterradas, como que esquecidas, na memória da já nonagenária Vivian.
Mas a sua história cruza-se então com uma jovem índia Penobscot, Molly Ayer, que está à beira de ser presa por ter tentado roubar da biblioteca um livro de Jane Eyre, se não arranjar forma de cumprir um serviço a favor da comunidade e quem se responsabilize por ela. Molly tem também um passado de perda do progenitor e de adoção / rejeição por várias famílias. É interessante notar quanto as estratégias mudaram, agora é o estado que paga aos pais adotivos para receberem as crianças.
É então através do encontro entre estas duas mulheres, Vivien com 91 anos e Molly a caminhar para os 18, que, alternadamente, a história de ambas nos é contada, naturalmente com maior relevo para a primeira. Acabam por se ajudar mutuamente compreendendo melhor as suas vidas e o percurso que as levou a ser o que são, superando a primeira os seus problemas e redimindo a segunda a sua vida passada, chegando mesmo a conhecer a filha que dera para adoção.

Sobre O Comboio dos Órfãos. (No fim do livro existe um anexo com esta informação)

KLINE, Christina Baker. O comboio dos órfãos. Asa, 2014.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

DISCURSO DO URSO, Julio Cortázar



História integrada no livro Historias de cronopios y de famas de 1962, agora ilustrada por Emilio Urberuaga, na celebração do centenário do seu nascimento.
Um urso vagueia pelos canos da casa. É ao mesmo tempo o medo dos humanos que não sabem explicar alguns dos barulhos que ocorrem nas tubagens das suas casas e uma explicação que maravilha as crianças, que, assim, percebem não haver razão para ter medo dos barulhos que os canos das suas habitações produzem.
O urso é uma entidade terna, extremamente amigável e protetora.
O texto curto e de fino humor é habilmente valorizado pela ilustração de Emilio Urberuaga.
Aqui fica uma imagem maravilhosa, com que acaba a história: …olho para a escuridão dos quartos onde vivem estes seres que não podem andar nos canos. E chego a ter pena deles ao vê-los tão desajeitados e grandes, ao ouvir como ressonam e sonham em voz alta, e como estão tão sós. Quando de manhã lavam a cara, acaricio-lhes as faces, lambo-lhes o nariz e vou-me embora, com a vaga certeza de ter feito bem.

Sobre o autor e o ilustrador transcreve-se a informação fornecida pela editora Kalandraka:

JULIO CORTÁZAR (Bruxelas, 1914 – Paris, 1984)
Viveu parte da sua infância na Bélgica e na Suíça. Estudou Letras e Magistério na Argentina, e foi professor em aldeias da província em Buenos Aires. Em 1944 deu cursos de literatura francesa na Universidade de Cuyo e em 1951, após obter uma bolsa do governo francês, estabeleceu-se definitivamente em Paris, onde construiu uma brilhante carreira literária que lhe daria o reconhecimento mundial. Da sua produção narrativa destacam-se Bestiario (1951), Final de juego (1956), Las armas secretas (1959), Historias de cronopios y de famas (1962), Todos los fuegos el fuego (1966) e os romances Los premios (1960), Rayuela (1963) e 62. Modelo para armar (1968). A obra de Cortázar foi traduzida para mais de trinta idiomas e ocupa um lugar de destaque no acervo literário do século XX.

EMILIO URBERUAGA (Madrid, 1954)
É o responsável gráfico por uma das personagens mais célebres da narrativa infantil espanhola: Manelinho Caixa de Óculos, traduzido em mais de dezoito línguas. A sua obra pessoal foi difundida na América Latina, Coreia, Estados Unidos, Espanha, Finlândia, França, Holanda, Inglaterra, Itália, Japão e Lituânia. Como escritor e ilustrador publicou vários trabalhos em editoras como Bohem Press, Edelvives e Anaya.
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CORTÁZAR, Julio. Discurso do urso. Kalandraka, 2008.