Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


sábado, 31 de agosto de 2013

O VERÃO DE 2012, Paulo Varela Gomes, Tinta da China, 2013



Sobre o autor transcreve-se a nótula incluída no Centro de Estudos Sociais –

Laboratório Associado da Universidade de Coimbra:

“Paulo Varela Gomes nasceu em 1952, é licenciado em História, mestre em História da Arte e doutorou-se em História da Arquitectura. É professor da Universidade de Coimbra. É professor e conferencista convidado de várias Universidades portuguesas e não-portuguesas.Foi representante da Fundação Oriente na India (em Goa) em 1996-1998 e em 2007-2009. É autor de vários artigos e livros nas suas áreas de especialização. Foi durante muitos anos crítico de arquitectura e arte. Foi autor e apresentador de documentários de televisão. É cronista regular da imprensa.”

Ao contrário de outros que defendem que não há coincidências, este livro está cheio delas:
O autor, o psiquiatra e o paciente, P., todos nomeados pela letra «p», parecem ser várias facetas da mesma entidade;
P. encontra várias semelhanças com o presente e com a sua visão da sociedade portuguesa nos diários de William Beckford;
O mesmo P. vê também analogias entre a vida de Julia Mandeville de Francis Brooke e a situação da sua esposa;
Só uma coincidência permite que o desfecho aconteça da forma que P. deseja…

O livro começa por estabelecer que quem conta a história é uma espécie de editor, pois escolhe de entre os escritos de P. e selecciona das suas conversas e consultas de psiquiatria o que é relevante para contar a história.
Esta história é bem simples. P. é informado que tem cancro e que tem pouco tempo de vida. Então este homem, deprimido mas lúcido, procura respostas, pondo tudo em causa: a sua própria vivência, o valor da vida, as suas relações com a sociedade circundante e com a Natureza. Há um cruzamento de várias vozes. Desta polifonia surge repetidamente a importância da vida perante a certeza da morte.
O livro explora a tensão entre a vida e a morte e várias perspectivas de as encarar.
Em P., a partir de que sabe que vai morrer proximamente há como que uma hipertrofia da visão que o leva a observar aquilo que antes não vira, e a pensar sobre vários temas a que não dera tanta importância: como prolongar a vida?, o cancro é doença de civilizados?, etc.
Paralelamente o livro é muito crítico em relação aos portugueses. Refere testemunhos de viajantes estrangeiros que deixaram críticas violentas aos hábitos civilizacionais do nosso povo. No entanto, há também uma crítica a esses que nos criticam e não escrevem mais que generalizações, afirmando o narrador o seu desconhecimento da história: Os viajantes estrangeiros do séc. XVIII viam Portugal como se do oriente se tratasse. (p. 68 e ss.). Mas, num momento seguinte, afirma que os portugueses passaram de pobres a pobres de espírito, consubstanciando esta afirmação com a construção civil: as construções que foram surgindo e descaracterizando o país, e enchendo os bolsos a alguns. (p. 79 e ss,)
Há críticas à política, quer ao modo como os povos do norte nos vêem: «A degradação política e económica do sul da Europa em relação ao norte era percebida também como degradação social» (p. 62), querendo significar com isto que os países do sul integravam um ror de africanos; quer a nível nacional, entre outras, o favorecimento descarado de classes e grupos sociais, principalmente a dos políticos. Mas o povo que elege tais governantes não fica de fora: «O voto, a liberdade de palavra ou de propaganda são o pão que se dá aos imbecis mergulhados até ao inconsciente na atmosfera falsificada do circo.» (p.35)
Outras críticas afloradas: à caça - «…recomeço da época de caça que […] tristeza»; à inércia e abulia dos portugueses, nas palavras de P. - «…gordos, estão gordos os portugueses, são uma espécie de americanos pequeninos e escuros, bolas de sebo e de lixo.» (p. 88), naturalmente que esta frase implica também uma crítica severa aos americanos; ao uso e abuso dos telemóveis - «…os pequenos electrodomésticos para perguntar “Onde é que estás?” coloridos e barulhentos como uma vida postiça.» (p. 91)

Ainda sobre a dicotomia vida/morte é muito interessante a descrição que se faz de uma povoação ao sul do país, mostrando a importância da forma como se olha a realidade, primeiro por P., depois pelo seu psiquiatra. Transcreve-se um pequeno excerto:
«…um prédio de dois andares […] simplório e tosco, podre de velho, como se estivessem acumulados mil anos de miséria no betão, nas pinturas, nos caixilhos […].(p. 89-90)

«São belíssimas as casas construídas nas primeiras duas décadas do século XX que vemos pela vila, quase todas ostentando orgulhosamente a data da construção sobre a porta […]. Têm vãos com molduras de cantaria: ombreiras esculpidas e vergas curvas com florões em cima. Nas açoteias há platibandas decoradas com estuque ou pedra com desenhos do mesmo tipo dos vãos…» (p. 94)

Naturalmente que estas duas visões que, de uma forma grosseira, podiam ser equiparadas a morte e a vida, não são unívocas. O primeiro testemunho têm algumas notas de reconhecimento de um valor estético existente e anterior ao surgimento do turismo: «…esconde a vista e tira o vento às casas antigas da vila, feitas quando havia um Portugal bem público, respeito mútuo e lei» (p. 90); o segundo apresenta também algumas notas disfóricas: «pequenos miranetes que permitiam ver a ria […] mas que agora não autorizam mais do que a vista das traseiras de prédios que o turismo fez erguer…» (p. 95).

O livro é extremamente rico, com uma linguagem cuidada e muitas referências cultas. Apetece completar a sua leitura com as de muitos dos autores e com a contemplação dos pintores citados, v.g., William Beckford, Gregório Felipe Franchi, William Hoghart, John Trusler, Frances Brooke, Curzio Malaparte, etc.

Algumas frases que muito apreciei:
«…a biblioteca pública onde aprendera o que são livros e para que servem.» (p. 16).
«Quem não consegue experimentar o amor sem causa não pode encontrar em parte alguma causa bastante para o amor.» (p. 52).
«O pânico é corporal, a coragem é mental, é o domínio do corpo pela mente.» (p. 124-125).

Nota: Em nenhum momento se pretendeu contar a história. São apenas notas, quase que desconexas, sobre a leitura.


Faleceu hoje, 30 de abril de 2016, o escritor Paulo  Varela Gomes, depois de cerca de quatro anos de luta contra o cancro.
Este escreveu em abril do ano passado um texto intitulado "Morrer é mais difícil do que parece".

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O ÚLTIMO ESPECTÁCULO, Manuel do Nascimento



Manuel do Nascimento nasceu em Monchique (onde a Escola Básica 2,3 ostenta o seu nome) em 1912 e faleceu em 1966. Trabalhou numa mina. Contatou com a realidade e apercebeu-se de que esta era bem diferente da idealização que dela se fazia. O conflito que existe dentro de si reflete-se nos seus contos.
O seu estilo e temáticas, pela crítica social e pelos protagonistas, podem inserir-se na corrente literário do neorrealismo, no entanto apresenta uma profusão de figuras de estilo[1] que aquela corrente depurou em grande parte.
O livro revela-se fácil de ler e em alguns momentos lembra contos de Manuel da Fonseca.

O último espectáculo é um livro de contos de 1955 que começa com o conto homónimo.
O título refere-se a um espetáculo de circo. Trata uma realidade comum na 1.ª metade do séc. XX: o circo ambulante, pobre e esfarrapado, mas cujo dono já viveu momentos de glória.
O dono, alcoólico, não faz dinheiro suficiente para pagar aos artistas, sonha com o passado, enquanto aqueles ameaçam deixá-lo se não receberem o que lhes é devido.
O narrador de 3.ª pessoa (heterodiegético) aproveita para generalizar sobre: as crianças exploradas e famélicas; a equilibrista bonita pronta para fugir dali, assim que algum homem lhe acene com uma perspetiva, ou ilusão, de futuro; o trapezista jovem e conflituoso. Tudo isto inserido numa perspetiva geográfica e social, ainda que não identificada, se infere sem a do Alentejo, em que muitos dos que veem o circo julgam que esses é que levam uma vida boa.

NADA DE IMPORTÂNCIA
Aqui, o narrador de 1.ª pessoa (autodiegético), engenheiro numa mina, conta o seu desagrado pela situação dos mineiros: condições de vida e trabalho. A sua angústia vai-se avolumando com a recordação de vários problemas ocorridos, redimida no final, quando é possível salvar alguns mineiros soterrados numa derrocada.
De qualquer modo a escolha do narrador autodiegético é um pouco forçada porque, no fim, não se justifica que o conto acabe sem resolver a situação que narra (narrativa aberta).

O VIZINHO
Narrador de 1.ª pessoa (homodiegético), testemunha que vai contando o que vê e sobre isso reflete.
Retrata a miséria dos trabalhadores braçais de sol a sol, vivendo em grandes famílias em casebres insalubres, alguns minados de doenças, capazes de, como nos dias que correm outros pobres comem o que encontram no lixo, comer o que aqueles com melhor sorte – a família do narrador – tinham colocado no balde dos porcos.

SAPO E LAGARTO
«-Sapo e Lagarto, o meu pai matou um porco.»
Motete com que os rapazes abusam de um pobre, ainda mais pobre do que eles, evidenciando a crueldade de um povo que se vinga naqueles que julga inferiores das ofensas daqueles que vê como superiores.
«As pragas que devem atirar-se ao tempo, à terra e à vida caem todas sobre os ombros fracos do velho.» (p.92). Veja-se que em nenhum momento se materializa a responsabilidade em outros homens. Medo ou consciência da censura?
Por fim, num dia de trabalho extenuante, quando o pobre velho, objeto de todo o gozo, aparece e o povo exausto não o invetiva, ele estranha e «descarrega contra si mesmo o veneno que trazia lá dentro…» (p. 94).

RESPEITA A MINHA DOR
Maria da Luz, casada há seis anos, aborrece a vida monótona que leva, a rotina da sua relação matrimonial. Conhece um pintor que encarna o seu ideal de amor. Encontra-se com ele algumas vezes e, então, decide-se acabar com o marido. Quando o confronta, incapaz de lhe revelar a sua relação com o pintor, queixa-se da vida que ele lhe dá. Este não a compreende, pois faz-lhe todas as vontades. Pensa que estará doente, que são nervos.
Ele deixa-a sozinha. Ela chora. Quando regressa à realidade, revê a sua vida, olha para «a pulseira cravejada de diamantes» e murmura: «-O António [marido] tem razão. São os nervos, os nervos malditos. Sim, devo ir ao médico.»
Nota: o título refere-se a uma frase marcante da carta que começa a escrever ao pintor para lhe dizer que não o verá mais. Mas destrói essa carta considerando que não lhe deve nenhuma justificação.

A FUGA
Um miúdo, com 10 anos, tendo vivido sempre em grande isolamento, um dia vai à feira da vila.
Vem de lá deslumbrado, só pensa no que viu, descura o trabalho de ajuda à família: sonha.
Pouco tempo depois, de madrugada foge e enceta o caminho para a vila, maravilhado por tudo ser novidade. Porém, quando chega à vila deserta – “como tudo estava diferente do dia de feira”-, procurou um homem que lhe oferecera trabalho e, de imediato, começou a trabalhar. Trabalho demasiado pesado para uma criança a troco de umas papas de milho e “toda a água que quisesse beber.”
Lembra o provérbio inglês “Out of the frying pan, into the fire.”

SILÊNCIO ESFARPADO
Contrabando. A primeira vez: medo, ansiedade, angústia. Como tudo corre bem vem a alegria pelo sucesso e o pagamento das dívidas.
Outra vez conduz as mulas com o sócio pelos ermos. Tudo vai correndo bem até que a situação de desafogo conseguida se torna notada e suscita a inveja do povo.
Prenúncio de desgraça. Agora é já de automóvel que a mercadoria viaja. A guarda está alerta e manda parar o carro. Eles não param, A guarda dispara e fere o companheiro.
Pensa livrar-se do sócio, mas decide esconder a mercadoria e levá-lo ao hospital.
Parece ser a sua oportunidade de arrepiar caminho, mas começa a pensar já ser dono de todo o negócio: «-Desta vez será tudo meu!»
Da necessidade à cobiça, à ambição desmedida.

A ESPERANÇA VOLTOU DE MANHÃ
Retrata o problema das cheias, o medo de perder as colheitas.
Até que de manhã para a chuva o casal protagonista se dirige à leira das batatas e constata que tinham escapado. Esta pequena alegria leva à aceitação e superação das suas dificuldades.

SUSPEITA
Isa acha estranho o comportamento do marido.
Ele reflete, sente-se culpado, porque se interessou por outra mulher, com a qual se encontrou algumas vezes em contexto de trabalho. Depois passaram um dia juntos. Ele pensa que tem de contar à mulher, Isa, mas mais tarde, com distanciamento.

Alguns exemplos de recursos estilísticos usados:
«casas… beijando o pó da estrada.»
«um homem… que a roubasse àquela miséria.»
«[Nina e a irmã] lembravam dois pequenos náufragos à deriva num mar encapelado.»
«As casas da curva da estrada lembram um harmónio velho apertado nos joelhos de quem lhe preme as teclas.»
«D. Luz tinha passado a noite numa insónia doce.»


[1] Alguns exemplos no fim.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O LANCE DE VÉNUS, Steven Saylor



Ingénuo! Julgava eu que esta trapalhada de afirmar isto e o seu contrário era uma característica desenvolvida pelos (políticos) portugueses. Nada mais errado. Não é mais do que uma herança que nos legaram os conquistadores romanos. Nem Viriato nos valeu.

“-Destruição de credibilidade […] a pedra de toque da jurisprudência romana. O acusador recorre a todos os meios para destruir a reputação do acusado, o que faz com que pareça mais provável que ele tenha cometido o crime de que é acusado. Depois, o defensor faz a mesma coisa, mas ao contrário, acusando os acusadores[1] de diversas abominações, a fim de destruir a sua credibilidade,” (p. 71)

Vamos então ao livro:
Este livro faz parte de uma série denominada Sub-rosa. Inclui: Sangue Romano, O Abraço de Némesis, O Enigma de Catilina, O Lance de Vénus, O Crime na Via Ápia e Rubicão (publicados em português).

O título vem de um jogo de dados romano, que no livro aparece referido numa taberna e bordel, em que o jogador ao lançar os quatro dados obtém um valor diferente em cada um deles.

Uma espécie de resumo:


Em 56 A.C., Díon, filósofo e embaixador egípcio, procura Gordiano, o Descobridor, que em jovem tinha sido seu aluno informal nas escadas da biblioteca de Alexandria. Disfarçado e aterrorizado por toda a delegação egípcia ter sido chacinada vem pedir ajuda a Gordiano para tentar continuar vivo.
Nessa mesma noite Díon será assassinado.
Gordiano é contratado para investigar a morte de Díon por Clódia, uma bela “femme fatale”. A procura de Gordiano revela a depravação da sociedade romana a vários níveis, nomeadamente política e de costumes. A verdade é indiferente em tribunal. O que vale são as orações dos acusadores e da defesa. Os testemunhos são despiciendos. Os homens e mulheres são facilmente descartáveis, principalmente os escravos. Em conclusão, não interessam os factos mas sim as palavras. Naturalmente, o fim é surpreendente: Díon foi morto por…
Nota: Os depoimentos dos escravos só eram válidos se obtidos sob tortura pelos oficiais do tribunal.
 


É espectacular a argumentação perante o Senado. Incrível como as orações, discursos, de Marco Célio e Cícero, no julgamento do primeiro, viram a acusação do avesso.

Frase de que gostei particularmente:

“Acho que o cabelo grisalho e as rugas são uma espécie de disfarce involuntário usado por todas as pessoas quando chegam a certa idade.” (p. 25)

Quem tiver oportunidade deverá ler os títulos pela ordem que foram publicados, pois fará mais sentido em relação aos factos históricos.


[1] Leia-se queixosos.