Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

CAIPIRAS DA MINHA TERRA, Jurandyr Aguiar



Nas minhas deambulações pelas feiras de velharias encontrei um pequeno livro de poesia que me suscitou interesse apenas pelo facto de apresentar uma dedicatória do autor, sendo que esta é de 1972 e o livro é de 1957.

Não sabia o significado de caipira, para além do que se podia intuir de uma canção que diz “Sou caipira pira pora…” Fui ver. Significa então, segundo o dicionário da Porto Editora, “Que ou quem mora no campo, na roça.”
Comecei a ler os poemas e fiquei deslumbrado com a beleza da linguagem que, naturalmente, é a dos caipiras. Aparecem várias palavras que me lembra de ouvir aos meus avós e que hoje, aqui em Portugal, ninguém diz.
Os poemas são pequenas hostórias de uma vivência rural: uma delícia. Para além de um lado jocoso, apresenta uma vertente crítica muito marcada. Malícia, inveja, incompreensão, homens farristas e mulheres escravas…

Aqui fica uma das composições que  brinca com a consciência de que o caipira sabe que fala um português arrevesado. (p. 88-90)

PRU MOR-DE A MANIA

"- Já oviu falá no cachorro
Do Nho Juca, não, Trindade,
Que sírre quano êle manda?
Pois ói, é a pura verdade.

É só Nho J uca mandá,
E o dianho do cachorrinho
Sírre que dá gosto vê
Êle amostrá os dentinho!

Mai, otro dia, Don' Ana
(Que ocê sabe, é munto prosa,
Só pru que é porfessora)
Sôbe disso, e, de curiosa,

Mandô dizê pra Nho Juca
I na escola da fazenda,
Mai que levasse o cachorro:
Queria vê a "tar" prenda!

Nho Juca foi. E o cachorro
Feiz na escola um figurão!
Quem não gostô foi Don' Ana,
Pru que ficô cum carão…

Nho J uca falava: - Sirra,
E o cachorrinho sirria.
Don' Ana falava: "Ria"
E êle nem se mexia!…

A porfessora Don' Ana
Tem um modo de falá
Que a gente, ar-vêiz, num intende,
Quanto mai os alimá.

E é pru mor-de a mania
De istudá francêis, ingrêis,
Que essa gente da cidade
Fala má o portuguêis!"


AGUIAR, Jurandyr. CAIPIRAS DA MINHA TERRA. Edição de Autor. Impresso por Ind. Gráfica Bentivegna, São Paulo)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O HORIZONTE, Patrick Modiano



Breve biografia :
Patrick Modiano nasceu em 1945. Publicou em 1968 o seu primeiro romance. Em 1972 recebeu o Grande Prémio da Academia Francesa, em 1978 o prémio Goncourt, em 1996 o Grande Prémio Nacional das Letras pela sua obra. Este ano de 2014 é prémio Nobel da Literatura. Escreveu cerca de 30 romances.
De acordo com a revista Lire, n.º 430 de novembro de 2014, a atmosfera que Modiano recria em quase todos os seus romances é a da época da Guerra da Argélia, de grupúsculos de esquerda radical, no coração de um Paris povoado de velhos colaboradores fatigados e de jovens já nostálgicos.

Resumo:
A personagem principal é Jean Bosmans. Um dia, através de uma anotação num caderno em que registava o seu dia a dia, numa letra quase indecifrável, encontra o nome de um tal Mérové. A partir daí vai-se lembrando do seu encontro e da relação que depois surge com Margaret Le Coz, uma jovem fugitiva, não se sabe bem de quê, que como ele tem a sensação de ser perseguida: ela por um certo Boyaval; ele pela sua mãe e o amante desta.
Com o desenvolvimento da ação vamos conhecendo a vida de Margaret: nascida em Berlim, vem para França onde conhece o tal Boyaval, para fugir deste vai para a Suíça e em Lausanne arranja um emprego como governanta de Bagherian do qual se torna amante e que a ajuda a fugir, quando Boyaval reaparece.
Depois de recordar toda a história que o ligou a Margaret, quarenta anos depois Bosmans decide procurar as personagens dessa sua relação. Procura Boyaval na internet e acaba por encontrá-lo dirigindo uma agência imobiliária. Naturalmente não se dá a conhecer, mas fica com a certeza de que é o homem que ensombrara a vida de Margaret através de um comportamento obsessivo que ela lhe descrevera: o jogo de espetar velozmente uma faca entre os dedos da mão sem se ferir.
Encontra também Yvonne Gaucher mulher de um tal dr. André Poutrel, ocultista, que vem a ser preso quando Margaret trabalhava para eles. Nesse momento, esta decide fugir uma vez mais, pois terá que prestar declarações e a sua situação não é legal ou é de duvidosa legalidade. Nunca mais dá notícias suas a Bosmans.
De novo, através da internet localiza alguém com este nome em Berlim e parte à sua procura. Entra num café perto da morada que obtivera na net e troca impressões com um cliente que a conhece e lhe diz quem ela dirige uma livraria.
A história acaba aqui, quando ele aparentemente se dirige à tal livraria.
Fica, naturalmente, a interrogação: Porquê só quarenta anos depois?

Uma das características mais interessantes deste livro é o modo como o tempo nos é servido, numa mistura sábia e eficaz.
Os principais temas tratados são a procura da identidade, sobretudo de Bosmans, narrador da sua própria história, através da procura de significação para todos os pequenos acontecimentos relacionados com a sua relação com Margaret; e a ausência das pessoas conhecidas, ou seja, como é que as pessoas desaparecidas sobrevivem na nossa memória.
Certamente, este livro lembra o À procura do tempo perdido de Marcel Proust.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

ANTOLOGIA POÉTICA, Carl Sandburg



Carl Sandburg (1878-1967, de ascendência sueca, nasceu no Illinois.
Desde os treze anos que desempenhou as mais diversas tarefas e profissões, foi pau para toda a colher: distribuidor de leite, pedreiro, trabalhador rural, porteiro de hotel, carvoeiro, jornalista, escritor premiado… Chegou a estudar quando, cumprindo o serviço militar, esteve em West Point, mas teve de deixar pois chumbou os exames de Gramática e Matemática. Mais tarde entrou na universidade mas abandonou em 1903 sem qualquer diploma.
Depois de se casar teve casa em várias localidades, entre as quais na zona suburbana de Chicago, que aparece frequentemente nos poemas deste livro.

Sandburg escreveu livros infantis, uma biografia de Abraham Lincoln, poesia…, tendo ganho três prémios Pulitzer.

Nota bibliográfica baseada principalmente na apresentação feita por Louis Untermeyer e na autobiografia incluídas como prefácio deste livrinho.

Apresenta uma poesia do dia a dia, muito mordaz, em que valoriza pequenas coisas, factos, histórias, com uma vertente de crítica social muito acentuada.
Transcrevem-se dois poemas:

SOPA

Vi um homem famoso comer sopa.
Vi que levava à boca o gorduroso caldo
com uma colher.
Todos os dias o seu nome aparecia nos jornais
em grandes parangonas
e milhares de pessoas era dele que falavam.
Mas quando o vi,
estava sentado, com o queixo enfiado no prato,
e levava a sopa à boca
com uma colher.

SOUP

I saw a famous man eating soup.
I say he was lifting a fat broth
Into his mouth with a spoon.
His name was in the newspapers that day
Spelled out in tall black headlines
And thousands of people were talking about him.
When I saw him,
He sat bending his head over a plate
Putting soup in his mouth with a spoon.

Longe vai o tempo em que a poesia era vista como a expressão dos sentimentos, muitas vezes amorosos, de um “eu”, veiculados através de uma linguagem elevada e respeitando rima e métrica.
Ainda assim, este contar a “vidinha” revela muito interesse e grande intervenção social.
Afinal que é ser famoso? Que faz um homem famoso diferente dos outros?
No poema acima, este famoso é até descrito de forma negativa, comendo o caldo gorduroso com uma colher, como qualquer outra pessoa, mas com o queixo enfiado no prato.

No poema abaixo, uma das constatações mais importantes é a efemeridade da vida humana e mesmo dos materiais construídos pelo homem. Sobressai também o contraste entre o pensamento que se pretende profundo do poeta com o homem que é interrogado. Naturalmente para este último o seu destino era o local para onde se deslocava, enquanto que para o inquiridor se tratava do destino de tudo o que existe.

RÁPIDO

Viajo de rápido, num dos melhores comboios do país.
Lançadas através da pradaria, na névoa azul, no ar escuro,
correm quinze carruagens com mil viajantes.
Todas estas carruagens serão, um dia, montes de ferrugem;
homens e mulheres que riem
no vagão-restaurante, nas carruagens-camas, hão-de acabar em pó.
No salão dos fumadores pergunto a um homem qual o seu destino.
“Omaha”, responde.

LIMITED

I am riding on a limited express, one of the crack trains of the nation.
Hurtling across the prairie into blue haze and dark air
go fifteen all-steel coaches holding a thousand people.
(All the coaches shall be scrap and rust and all the men
and women laughing in the diners and sleepers shall pass to ashes.)
I ask a man in the smoker where he is going and he
answers: "Omaha."


SANDBURG, Carl (Seleção e tradução de Alexandre O’Neill). ANTOLOGIA POÉTICA - Tempo de Poesia n.º 4. Edições Tempo, circa 1961.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

SLAN, de A. E. van VOGT



Normalmente, os livros de ficção científica partem de uma ideia de avanço científico e, aqueles que são verdadeiramente bons, constroem à volta desse passo em frente uma nova sociedade coerente, prevendo todas as implicações possíveis.
Este, apesar de, para além das naves espaciais e da anti-gravidade, que já muitos tinham utilizado, surgiu com a energia atómica limpa e ligas metálicas muito mais resistentes do que até agora se conhecem, apresenta como principal motivo a evolução do próprio homem.
No princípio julgamos estar perante o confronto entre duas espécies diferentes: os slan e os humanos, sendo os primeiros produtos de experiências de um cientista, Samuel Lann – daí slan; depois somos levados a pensar que são três: os verdadeiros slan que apresentam por entre os cabelos tentáculos dourados, outros slan que não os têm e os humanos, sendo que os primeiros são capazes de ler as mentes de todos e comunicar entre si por telepatia.
Argonauta n.º 23
Um dos temas é, sem dúvida, a xenofobia, o medo do que se desconhece mas há também considerações sobre o governo dos povos, a propaganda e a desinformação a alimentar o medo e o ódio.
O enredo é bem conseguido. A certa altura poderíamos pensar que não haveria justificação para o surgimento ou desaparecimento de determinadas personagens, mas no fim o autor surpreende-nos com a coerência da sua introdução na história, justificando uma leitura para além do mero entretenimento. A história têm o fim aberto, indiciando a possibilidade de uma continuação. De facto, a sua esposa veio a publicar uma sequência a partir de um manuscrito inacabado.
O livro narra a história de John Thomas Cross, Jommy Cross, que com nove anos se vê órfão de pai e mãe. O pai deixara-lhe como legado a arma mais poderosa até então inventada, assim como outros estudos científicos. Esta arma deveria ser usada apenas como último recurso na sua sobrevivência e na persecução de fins altruístas. É obrigado a viver escondido, até ter maturidade suficiente para recolher esse legado escondido e depois volta a viver escondido na procura de soluções para os conflitos existentes e de outros slan. É essa clandestinidade que lhe permite desenvolver as suas capacidades e procurar os meios para conseguir os seus objetivos, nomeadamente o mistério da sua própria existência.
Afinal os slan com os sem tentáculos na cabeça, eram apenas a evolução própria da natureza, que através dos milénios permitiu que os seres evoluíssem e se modificassem. Tal como houve homo habilis, homo erectus, homo sapiens, haverá…
O fim deixa-nos a esperança que, apesar de uma guerra eminente, o homem há de evoluir para um ser melhor, mais generoso e clarividente.

VOGT, A. E. Van. SLAN. Dell.

(Tradução portuguesa na coleção Argonauta n.º 23)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A POMBA, Patrick Süskind



Jonathan Nöel, na casa dos 50, vive numa mansarda em Paris. É guarda de um banco. Tem uma vida monótona e sem sobressaltos. Aliás exatamente aquilo que ele deseja: «havia uns bons vinte anos que levava uma vida igual sem incidentes.» (p. 7)
Uma pomba, uma simples pomba ferida, que naquela manhã está no corredor que leva à casa de banho, e sujou a passagem com os seus dejetos, é o absurdo que rasga a realidade construída por este homem ao longo de cerca de três décadas.
É surpreendente como algo que interfere com as nossas rotinas nos pode desequilibrar, pois os medos e fobias em grande medida estão dentro de nós e não têm qualquer substância, são ridículos. Na verdade para lavar os excrementos deixados pela pomba um trapo e um pouco de água bastam, no entanto para lavar a porcaria criada por um cérebro doentio será preciso encontrar o esfregão eficaz, o que se poderá revelar difícil.
Como o bobo da corte de antanho, também Jonathan vai dizendo umas verdades a respeito dos seus concidadãos e da estratificação social.
O livro, para além da obsessão do protagonista, reflete sobre a sociedade.

SÜSKIND, Patrick. A Pomba. Editorial Presença, 1987

Outras obras do autor:
O Perfume


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O AFINADOR DE PIANOS, Daniel Mason




 Livro que apresenta um retrato da Birmânia entre Outubro de 1886 e Abril de 1887. Situa-se em plena luta pelo domínio total dos Estados Shan na Alta Birmânia.
A personagem principal é Edgar Drake, um afinador de pianos, ainda que tenha especial importância um major médico, Anthony Carroll, pois é devido à insistência deste que ele é contratado para afinar um piano Erard  em plena selva, que fora enviado pela coroa inglesa a pedido deste médico, uma vez que, aparentemente, através da música conseguia influenciar os homens e mesmo os príncipes shan.
Edgar Drake mostra-nos o que vê. Há belas e detalhadas descrições de lugares e ambientes, muitas dinâmicas, pois descreve a partir de meios de transporte.
Um pequeno exemplo de descrição: «…a Birmânia surgiu como que de trás de uma cortina levantada num palco. Ao sair para a rua, a multidão enxameou à sua volta. Voltou-se. Atropelavam-se mãos que estendiam cestos de comida. Havia mulheres que o olhavam fixamente, com rostos pintados de branco e segurando nas mãos grinaldas de flores. Aos seus pés, um mendigo fez pressão contra a sua perna, um rapaz choroso e coberto de crostas e chagas abertas e ele voltou-se novamente e tropeçou num grupo de homens que transportavam caixotes de especiarias suspensos em varapaus compridos…»
O fim perfeitamente verosímil é no entanto muito diferente do que se podia esperar, revelando o autor a capacidade de contrariar o expectável e de surpreender.

É o primeiro livro deste autor, baseado em sólida pesquisa, de acordo com as fontes mencionadas. Sobre o autor a badana diz-nos, o seguinte:
«Daniel Mason fez o bacharelato em Biologia, em Harvard, e passou um ano a estudar a malária na fronteira da Birmânia com a Tailândia… Estuda actualmente na Universidade da Califórnia, em São Francisco, enquanto ultima um novo romance que terá Pedro Álvares Cabral com protagonista.»

Assim que o encontrar, lê-lo-ei, pois dar-me-á certamente tanto ou mais prazer do que este!

MASON, Daniel. O AFINADOR DE PIANOS. Asa, 2003


sexta-feira, 26 de setembro de 2014

UMA OUTRA VOZ, Gabriela Ruivo Trindade




Estamos perante um primeiro livro de uma autora ainda jovem e que me faz desejar ler um segundo, pois este é extraordinário.
Este livro é a biografia ficcionada de uma família, alegadamente baseada na família da autora. Há breves referências à implantação da República e também ao 25 de Abril em função das personagens cujas vidas se contam.
A história é contada por cinco vozes diferentes cujas referências se sobrepõem e se complementam. A restante narração surge pela voz daquele que é personagem principal, sob a forma de um diário fragmentado, supostamente descoberto por uma familiar.
O epílogo, ou melhor os dois epílogos são quase redundantes, pois o próprio Mariano Serrão caracteriza no seu diário quem será capaz de contar a sua história.

No sentido da promoção da leitura, a declaração do júri, que lhe atribuiu o prémio LeYa em 2013[1], é uma garantia de qualidade:
«O júri destaca a consistência do projecto narrativo que procura, através de várias gerações, e com o foco em personagens de grande força, sobretudo femininas, retratar a transformação da sociedade e dos modelos de vida numa cidade de província, no Alentejo. Merece destaque a originalidade com que a autora combina o individual e o colectivo, bem como a inclusão da perspectiva do(s) narrador(es) no desenho cuidado de um universo de vastas implicações mas circunscrito à esfera do mundo familiar ao longo de um século de História. Também a exploração ficcional de registo diarístico e a inclusão da fotografia dão um sinal de modernidade formal a esta obra.»

TRINDADE, Gabriela Ruivo. Uma Outra Voz. Leya, 2014



[1] Manuel Alegre (Presidente(, José Carlos Seabra Pereira, José Castello, Lourenço do Rosário, Nuno Júdice, Pepetela e Rita Chaves.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

A REVOLTA DOS MICRONAUTAS, Gordon Williams



 Antes deste livro o autor[1] escreveu Os Micronautas e A Microcolónia. No entanto a leitura deste não depende da dos primeiros.
O mundo devastado pela guerra, pela fome e pelo medo decide clonar cerca de 10.000 seres humanos, através de um processo irreversível, reduzindo o seu tamanho em cerca de 35 vezes. A colónia, projeto Arcádia, é fechada num parque e são colocados sinais identificando o local como radioativo os de outros perigos químicos, que ajudam a isolar e proteger o local.
O tempo passa e os criadores acabam por desvalorizar e mesmo esquecer a colónia. Outros governantes tomam as rédeas do poder e tomam conhecimento da existência desta experiência, considerando-a uma aberração e, em princípio, pensam  destruí-la logo que se inteirem da sua localização.
Os pequenos homens, apesar das desavenças que já existem entre eles, têm de se unir para lutar pela sobrevivência, mesmo contra os próprios criadores.
Há um grupo de dissidentes, que fugiu do poder central, quase que ditatorial, que vivem livres mas quase como selvagens. Mas nesse pequeno grupo nasceu uma criança, promessa de futuro, algo que não foi conseguido no resto da colónia. Uma esperança que a governação da colónia quer assumir como de todos.
Ambos os grupos têm de lutar contra um homem, tamanho inteiro, criminoso, que talvez por não saber ler os sinais de perigo, entrou no parque e cria uma tão grande ameaça que os força a unirem-se para se salvarem.
O intruso acaba por morrer, depois de ter bebido em excesso bebidas alcoólicas encontradas numa casa do parque, com os pulsos e os tornozelos cortados pela ação conjugada de centenas de pequenos homens. Este ato equivale à assunção de que são seres de espécies diferentes.
Ironicamente o chefe dos revoltosos vem a ser o comandante de toda a colónia. Fica, no entanto, a certeza de que este não tem capacidade para gerir um tão largo número de seres, alguém terá que organizar esta sociedade: os homens que têm capacidade para pensar, para ver além do imediato.
Acaba o livro com a promessa do novo líder mundial, o cego e fanático religioso, Hallot, de que assim que souberem onde fica Arcádia, esta será varrida do mapa.
Um dos mais interessantes temas abordador é o estudo, ainda que implícito, da natureza humana: as estruturas de poder, a emoção que domina a razão, a superioridade do coletivo sobre o individual…

Nota: Aparentemente, nenhum dos três livros desta sequela foi traduzido para português.

WILLIAMS, Gordon. Revolt of the Micronauts. Bantam Books, 1981.


[1] Escocês nascido em 1934, jornalista e guionista de televisão, produziu mais de 20 títulos, dois dos quais foram levados ao cinema. De Os Micronautas foi escrito um guião para cinema, mas até agora não foi realizado.

domingo, 21 de setembro de 2014

O CAVALO ESPANTADO, Alves Redol



«-E o cavalo amarelo [cavalgado pela Morte] espantou-se e vai pelo mundo com o freio nos dentes.»
«-Não foi só o cavalo amarelo que se espantou, Pedro. Espantaram-se os quatro. Foi por isso que fugi…» (p. 288)

A citação acima justifica o título do romance.
Pedro e Jadwiga referem-se aos cavalos dos Cavaleiros do Apocalipse: branco, Peste; vermelho, Guerra; negro, Fome e amarelo, Morte (destruindo pela fome, pela guerra e pela peste).

Alves Redol, apesar de ser considerado um dos marcos do neorrealismo português, neste romance dedica-se mais à análise psicológica das personagens, através de uma estratégia de narração que, penso, na altura era algo invulgar: as três personagens principais narram alternadamente a sua visão dos factor, existindo ainda um narrador fora da história. Isto permite a objetivação dos diferentes pontos de vista e um conhecimento mais íntimo das personagens.
Redol apresenta no prólogo do romance uma explicação sobre a envolvência da história e caracteriza desde logo as personagens principais, aliás titula este prólogo de “o escritor antecipa-se e fala das personagens antes que outros as encontrem e conheçam”.
Assim, as personagens são Leo e Jadwiga, casal de judeus austríacos fugidos da ameaça nazi, e Pedro, secretário de um consulado numa Lisboa «de aparência sonolenta, entroncamento de foragidos e espiões, vindos à babugem de sol e de sossego.», que apõem vistos de permanência nos passaportes deste casal apesar de ter praticamente a certeza de que são documentos falsos.
Eis um extracto da caracterização destas personagens feita pelo autor:
«Três personagens, dizia eu: dois homens e uma mulher na teia das frustrações…»
«…A mulher, austríaca […] cabotina e inquieta, loura, talvez bonita por causa dos seus olhos verdes…» para quem «a literatura é também agradável sedativo…»
Pedro, «homem taciturno, contraditório, ora abúlico, ora exaltado, quase sempre dramático, vivendo entre uma inteligência serena, rigorosa na aparência, e os instintos que a destruíam quando se soltavam da prisão construída por aquela.» Assim, «deambula entre o querer e o dever».
«Leo, homem de negócios, fora dos seus negócios é o marido, às vezes ciumento e ainda apaixonado pela mulher.»

Ora esta nunca o quis, apenas aceitou casar com ele para fazer a vontade ao pai, importante banqueiro judeu. Estão juntos apenas pela necessidade de viajarem como casal, pela compra daqueles passaportes falsos.
Ela tenta -aparentemente chega mesmo a apaixonar-se por Pedro-, que este lhe corresponda, mas ele consegue, neste caso, sobrepor a razão aos sentimentos, pois também ele a ama: «Nem um triângulo amoroso soubemos fazer.»

O livro é muito interessante do ponto de vista da análise de caracteres, mas também em relação à descrição do ambiente lisboeta na eminência da II Grande Guerra.

REDOL, Alves. O Cavalo Espantado. Portugália Editora, 1960

domingo, 14 de setembro de 2014

CONTOS SILÁBICOS, Fernando Eloy do Amaral




Afirma no texto inicial, a que chama Pórtico, que este estilo, se de estilo se trata, se deve à natural preguiça e à velocidade da vida.
Estes textos contam, em muito poucas palavras, histórias relevantes de um quotidiano intemporal e por eles perpassa um certo pessimismo, mas também uma saudável ironia. Seguem-se três exemplos:

O ciclo da vida que inexoravelmente cairá no esquecimento:

«As horas passam. Passam. Passam. O bébé nasceu.
As horas passam. Passam. Passam. O homem sofreu.
As horas passam. Passam. Passam. O homem morreu.
As horas passam. Passam. Passam. Já ninguém mais chora.» (p. 21)

A fatalidade da morte de uma criança nunca esquecida:

«Um brinquedo. Uma família que já não chora. Um berço
vazio. Um brinquedo sempre à espera.» (p 25)

O mundo ao contrário, a inversão das relações hierárquicas, a subjugação aceite através da ideia de pertença. O peso da rotina. Todas as vidas estão circundadas de uma gaiola. Apenas umas são maiores do que outras:

«Um pássaro de gaiola espera que o seu dono saia da prisão
Do dia a dia.» (p. 77)

Nota: O livro é profusamente ilustrado por AVICENTE.

AMARAL, Fernando Eloy do. Contos Silábicos. Edição
de autor, 1959


terça-feira, 9 de setembro de 2014

O FARAÓ, de Boleslaw Prus



Este livro, escrito em 1895, relata o fim do reinado do faraó Ramsés XII e o breve reinado de seu filho Ramsés XIII (séc. XI b.C.). Ora ambos são personagens ficcionais (a 20.ª dinastia acaba com Ramsés XI), tais faraós não existiram. Deduz-se, portanto, que o autor não pretendeu escrever um romance histórico. No entanto todo o texto revela um conhecimento profundo da vida do Egipto e da forma como essa sociedade se organizava. Há belas descrições dos espaços e de diversas situações pragmáticas do dia a dia deste povo.
Retrata uma sociedade em que os nobres e o clero usufruem de grandes privilégios e de grande riqueza, enquanto o povo vive escravizado e na miséria.
O ponto de partida é a ideia de que o novo faraó pretende suavizar a vida do seu povo. Para isso precisa de dinheiro, visto que o tesouro do país está delapidado, mas os sacerdotes dos vários deuses e os templos nadam em ouro. Gera-se um confronto entre o faraó e o sumo sacerdote pelo controlo do poder.
Os sacerdotes são muito mais sábios do que o jovem faraó, que apesar de se notabilizar na guerra, não é capaz de perceber a gestão do país e as razões de estado.
Os sacerdotes vão-lhe dando a ilusão de que manda. Apesar de este ser suficientemente arguto para descobrir muitos dos segredos do clero e se aperceber de que nem sempre consegue compreender as várias vertentes dos problemas com que é confrontado, a verdade é que vai sendo subtilmente enganado, mesmo por muitos daqueles em que tinha depositado a sua confiança.
O povo é descrito como um cata-vento, facilmente influenciável por agitadores de ambos os lados, mas os sacerdotes conseguem dominá-lo através de milagres, que não são mais do que a aplicação do conhecimento científico que detêm, quer a nível da química, quer da astrologia, v.g., a previsão de um eclipse do sol permite-lhes transformar uma situação aparentemente desesperada num vitória retumbante.

Apesar de muito extenso (533 pp., nesta edição), é de fácil leitura.
O autor (1845-1912), de acordo com uma nota no final do livro, pretendeu criar um paralelismo com a situação na Polónia no séc. XIX, esmagada pelo jugo dos czares.

PRUS, Boleslaw. LE PHARAON. Marabout, 1959

terça-feira, 12 de agosto de 2014

DÁDIVA DIVINA, de Rui Zink



A narração, à semelhança de outros livros seus, confunde-se entre o eu que conta dentro da acção (intradiegético) e um outro eu fora da acção (extradiegético). Sempre numa linguagem coloquial, mordaz, e prolixa em comentários sobre as atitudes das personagens ou mesmo sobre qualquer outro assunto que, por associação de ideias, surja. Esta atitude é mesmo assumida pois, numa fase em que dialoga com o papel em que escreve, diz: «Sim, papel, estico-me em demasia e perco o fio à meada.» (p. 173)
Este romance é tão, se não mais, iconoclasta, sacrílego que O Evangelho segundo Jesus Cristo de José Saramago. Não se terão ouvido muitas críticas pois não estamos perante um candidato ao Nobel. Não há dúvida, porém, que os católicos praticantes se sentirão ofendidos na sua fé.
Basicamente um detective, aparentemente não muito inteligente, que cita um hipotético manual da profissão em versículos, é encarregado de encontrar um homem que não é mais nem menos do que Jesus Cristo. Esta busca justifica-se com base na ocorrência da ressurreição. O livro começa por mostrar a ausência do corpo de Jesus do túmulo onde fora colocado, ainda que esse pequeno fragmento narrativo não respeite totalmente a narrativa bíblica. Uma vez que não foi encontrado e é imortal há de andar por aí. É só preciso encontrá-lo…

Transcreve-se da contracapa:
«Sam Espinosa é um homem que não acredita em nada. Até ao dia em que morre e se enamora. A partir daí, não tem outro remédio senão passar a acreditar…
Em suma, ele ainda não sabe, mas vai encontrar Jesus.»

Sobre o autor (p. 4):
«Rui Zink nasceu em 16 de  Junho de 1961. Escritor e professor auxiliarna FCSH-UNL, a sua escrita estende-se pela ficção, o ensaio e o teatro. É autor de várias traduções e alguns dos seus livros foram traduzidos para alemão, hebraico, inglês e português. Da sua obra destacamos os romances Hotel Lusitano, Apocalipse Nau e O Suplente; os livros de contos A Realidade Agora a Cores e Homens-Aranhas e a novela A Espera. É ainda autor do romance Os Surfistas, o primeiro e-book português, e co-autor de Major Alverca e dos livros infantis O bebé que… não gostava de televisão, O bebé que… não sabia quem era e O bebé que… fez uma birra, editados pelas publicações Dom Quixote. É membro da direcção do movimento espiritual Felizes da Fé (www.felizes.com) e da Associação dos Cidadãos Auto-Mobilizados (www.aca-m.org).»

ZINK, Rui. Dádiva divina. Dom Quixote, 2.ª ed., 2004


sexta-feira, 11 de julho de 2014

AGOSTO, de Rubem Fonseca



A traição fazia parte do jogo político.” (p.179)

A alegada corrupção dos políticos portugueses, comparada com a relatada neste livro em relação aos brasileiros, faz dos primeiros autênticos meninos de coro.

O título refere-se a agosto de 1954.
O livro assume-se como uma espécie de romance histórico em que é difícil destrinçar a realidade da ficção. Resulta num policial entrecruzado com a história dos acontecimentos que levaram à deposição e suicídio do presidente Getúlio Vargas.
A corrupção das instituições, da Presidência da República, dos deputados, dos políticos em geral, dos militares e mesmo da polícia grassa e mina a sociedade brasileira de então (??).
Os poucos que se mantêm limpos (“asa-branca”) são destruídos ou mesmo eliminados.
É o que acontece com diversas testemunhas do caso que o comissário Mattos investiga. O crime está ligado com questões políticas, o que permite ao autor fazer a ligação acima referida do policial com o romance histórico.
O próprio comissário vem a ser morto, ironicamente depois de um contrato fracassado, impendem sobre a sua cabeça dois outros, tendo um dos assassinos chegado tarde mas reclamando para si a autoria da morte, naturalmente para receber o seu «prémio».

FONSECA, Rubem. AGOSTO. Planeta de Agostini, 1999.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

AS PRIMEIRAS EDIÇÕES, de James Stoddard



Como seria interessante para um bibliófilo possuir o único exemplar de um livro, uma autobiografia a que nada fora escamoteado? Como seriam homens ou mulheres transformados em livros?!
A ideia para este história, segundo uma entrevista dada pelo autor, surge após a leitura de um anúncio à saída de uma biblioteca: “If I were a book, I’d be a library book so I could meet a lot of people.”  (Se eu fosse um livro, seria um livro de biblioteca de forma a poder conhecer muita gente.)
Este conto apresenta-nos um feiticeiro, Yon Diedo, colecionador de primeiras edições de livros raros. Mas na sua biblioteca há ainda uma secção em que os livros são tão raros que são  exemplares únicos, não têm título, a lombada apenas menciona o escritor, ou assim o julgou Jakob Mamolok, ele próprio também amante de livros raros.
Quando Mamolok, que é o narrador, se interroga sobre esta estranheza é transformado em livro:

A minha visão tornou-se instável. Dei por mim jazendo de costas na cadeira, a minha cabeça ao nível dos joelhos de Diedo. Rindo, aproximou-se de mim, a mão tateante cobriu minha visão.
Então ele pegou-me e segurou-me nas suas mãos. Encontrei-me a olhar para os seus pés, incapaz de lhe ver o rosto.
[…]
Senti a pressão das suas mãos sobre os meus lados. E então ele abriu-me. Ouvi um suave rangido, o ligeiro restolho de folhear o papel. Meio apatetado percebi que me tinha transformado num livro. (Tradução livre[1].)

Os homens e mulheres transformados em livros mantinham um olho na lombada, o que lhes permitia ver, e podiam falar uns com os outros com pequenas vozes quase inaudíveis e também ler os exemplares contíguos, se a isso fossem autorizados.
Mamolok, depois de uma permanência que se percebe não ser muito longa[2], leva a biblioteca a rebelar-se contra o feiticeiro. Finalmente consegue que este prometa a sua libertação e a de um outro livro à sua escolha.
O feiticeiro mantém a sua promessa e, aparentemente, aos poucos vai-se livrando da sua obsessão, pois cerca de 40 anos mais tarde o narrador encontra a Contessa du Maurier, que fora uma das suas «amigas» enquanto ambos eram primeiras edições.

Não sei se está traduzido em português. A história é, sem dúvida, mais interessante para bibliófilos. Também eu procuro primeiras edições, mas sem qualquer obsessão: são caras e, na verdade, importa mais o texto que o objeto.
Naturalmente o texto critica qualquer obsessão, principalmente pela raridade, pelo dinheiro ou pela beleza, que neste conto são simbolizados respetivamente por Diedo, Mamolok e pela Contessa.


STODDARD, James. The First Editions, in Fantasy & Science Fiction, April 2008.


[1] My sight grew unsteady. I found myself lying on my back in the chair my head level with Yon Diedo’s knees. Chuckling, he reached toward me, his groping hand covering my vision.
Then Yon Diedo picked me up and held me in his grasp. I found myself looking as his feet, unable to see his face. […]
I felt the pressure of his hands upon my sides. And then he opened me. I heard a soft creaking, the slight shuffling of paper. With numb horror I realized I had transformed into a book.
[2] Quando é libertado, pode retomar a sua vida. Já tal não sucede com a Contessa.

terça-feira, 17 de junho de 2014

O NOME DAS ÁRVORES, Rui Miguel Fragas



Escrito sob pseudónimo, este livro procura estabelecer uma nova poética. O texto surge-nos como se fosse prosa com cortes ora nos parágrafos, ora noutros pontos fulcrais da frase. Diz-nos o poeta: «Só há poemas porque as palavras existem.» e «porque existem poemas dentro das palavras»; «Um poema é uma coisa simples: os versos chegam e espraiam-se horizontais na branca planura dos dias.»…
Noutro ponto afirma: «As palavras não gostam de metáforas», no entanto o seu texto está pejado delas. Muitas referem-se ao ser amado, outras à realidade circundante transformada pelos sentimentos de ambos ou apenas do eu lírico.
Podemos considerar que quase todos os poemas são hinos, ora a um amor inconstante que lhe escapa (talvez mesmo metafísico), ora a um amor mais carnal em que se entrevê uma mulher através do uso metonímico de vocábulos relativos ao corpo ou ao vestuário, v.g., “mãos”, “vestido”, “última peça de roupa”.
No entanto, em alguns momentos, o «tu» que encontramos em quase todos os micro-textos perece ser o leitor que é confrontado pelo poeta (…«a caligrafia do fogo alimenta o teu olhar. Estamos em lados contrários do livro.» p. 54).
Há ainda uma desconstrução da realidade quase até ao absurdo, lembrando-me dos versos de Pessoa: «Tudo o que sonho ou penso,/ O que me falha ou finda,/ É como um terraço / Sobre outra coisa ainda. / Essa coisa é que é linda.»[1]
Finalmente, penso que o poeta procura ainda uma voz que possa traduzir eficazmente o transcendente e o inexplicável a nível dos sentimentos e do intelecto.
Abundam perguntas para as quais aparentemente não se procura resposta, pois acabam em ponto final e não em ponto de interrogação. O texto é frequentemente paradoxal. Provavelmente num próximo livro encontraremos uma linguagem mais depurada.
Aqui ficam dois dos poemas. O primeiro dá nome ao livro, o segundo, a minha escolha:

O nome das árvores

Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores e
guarda no bolso dois nomes para cada árvore. As
árvores não morrem no interior da sombra.

Quem é que sabe que saber até ao fim do mundo é
pouco mais do que nada. Quem sabe que as palavras
são só uma nesga da paisagem. Quem caminha assim
por dentro dos caminhos. O nome das árvores é o
silêncio.

Há quem olhe as árvores como quem procura pássaros
dentro das árvores e o céu por cima das árvores. As
árvores não morrem no interior da sede.

Quem é que sabe que o destino é tão lento e está tão
perto. Por quem se demora o vento quando o vento se
demora. Quem é que sabe que sonhar é o princípio da
respiração. As árvores são o lume quando os caminhos
se acendem.

Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores
ou como quem olha as casas ao cair da noite. As
árvores não morrem no interior do medo.

Quem é que sabe que viver é viver para lá da última
folha. Quem é capaz de morrer e depois de morrer não
morrer ainda. Quem habita os lugares invisíveis. As
árvores caminham no descuidado caminhar do tempo.

Há quem olhe as árvores como quem olha as árvores
com os olhos súbitos e incendiados do amor. As
árvores não morrem no interior da chama.

Tudo nas árvores é o coração das árvores. Por quem os
pássaros esquecem as asas quando os pássaros
esquecem as asas. Quem sabe devagar amadurecer um
fruto. Quem é capaz de amar assim até às raízes.

Infinita conversa com as nuvens

Antes de partir para as montanhas espalharei os
poemas pelo chão como quem abre um mapa pela
última vez. Como quem relembra o extenso areal dos
dias, a incansável rotina dos comboios, a infinita
conversa com as nuvens.

Quando partir para as montanhas deixarei os poemas
pelo chão como quem renega todos os mapas. Levarei
apenas o meu corpo para que ele me fale do teu.

FRAGAS, Rui Miguel. O Nome das Árvores. Poética Edições, 2014.


[1] Sublinhado meu.