Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

DIA DE NATAL



Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?)
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente acotovela, se multiplica em gestos esfuziante,
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
E como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus,
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!

E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

GEDEÃO, António. Máquina de Fogo, 1961




Naturalmente, este poema poderá ser encontrado em muitos outros lugares da net.
Foi escolhido não apenas por ser Natal, mas por incluir uma das mais inteligentes criticas ao mesmo.
Levanta questões importantes: Há dias para ser bom?;  Devemos convencer os nossos semelhantes a aceitar a sua situação ou ajudá-los a melhorá-la?; Há inimigos que merecem ser perdoados e outros não? ...
Para além disso é fácil perceber a crítica à hipocrisia, ao consumismo e mesmo à perversão de valores morais.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

GAIVOTA, Maria Rosa Colaço



A autora dedica o livro a todas as crianças que,como Alfredo, são símbolo de sonho e de esperança.
Conto que narra um dia na vida de Alfredo, dito Gaivota:
«Porque me chamam Gaivota?
Está mesmo a ver-se…tenho passado entre os barcos e o Tejo, em cima deste paredão [Cacilhas], correndo e escorregando nestas pedras húmidas, mais de metade  da minha vida: às vezes, até a pele me sabe a sal.» (p. 9)[1]
Alfredo é-nos apresentado como um miúdo pobre na zona de Cacilhas. Vive ao deus-dará, fazendo de tudo um pouco, ou nada. Vive entre a raiva da sua situação e o deslumbramento da vida que o cerca.
Apesar da narração ser de terceira pessoa, passa frequentemente para o ponto de vista do próprio Gaivota, que nos interpela e é interpelado pelo narrador, em que questiona as suas memórias de um tempo mais feliz.
É a época do Natal e estamos perante uma criança desiludida, no entanto as suas reflexões produzem em nós um desejo de pensar também sobre a vida.
No final, perante a proposta de emprego como aprendiz de mecânico toda a felicidade perdida retorna, apesar da perda do pai em condições que não são explicitadas, de acossado pelo padrasto e descuidado pela mãe.
COLAÇO, Maria Rosa. GAIVOTA. Edições Nave, 1.ª ed., 1982.


[1] A alcunha vem do facto de correr sobre os pontões de braços abertos.
 


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O ÚLTIMO CABALISTA DE LISBOA, Richard Zimler



Richard Zimler fala fluentemente o português, no entanto escreve os seus livros em inglês, que depois são traduzidos para a nossa língua por outrem. Isto deve-se ao facto de o autor querer manter a fluência na sua língua nativa, portanto lê, fala e escreve em inglês. Naturalmente não é despicienda a abrangência, a nível de mercado, da sua língua mãe.
É um homem versado em religião, tendo-se formado em Religiões Comparadas. É judeu, mas, segundo o próprio, não muito empenhado. Julgo ter entendido, de uma conversa sua com leitores, que será assim como que o nosso católico tradicional.
A O último cabalista de Lisboa poderemos chamar de romance histórico, pois o autor retrata com grande fidelidade os acontecimentos ocorridos em Abril de 1506. Para isso documentou-se sobre a disposição espacial da Lisboa de então, sobre alimentação, vestuário, etc. Por outro lado, parece um romance policial, pois ocorre um crime e a ação desenvolve-se na procura do culpado.
De acordo com a introdução, o autor descobre manuscritos de Berequias Zarco escritos entre 1507 e 1530 e propõe-se contar-nos o que aí leu. Esta estratégia permite-lhe transformar o escritor em narrador, ou seja, em vez de apresentar os manuscritos, assume que seleciona deles o que é relevante e que verterá o discurso no seu próprio estilo.
O essencial da ação decorre na Páscoa de 1506, durante e após o massacre de cerca de 2000 cristãos-novos, judeus que tinham sido forçados a converter-se ao cristianismo em 1497. Quando da conversão Berequias, o protagonista, fora batizado com o nome de Pedro.
Pedro Zarco é um  jovem com cerca de vinte anos que vai ter de deslindar as circunstâncias em que ocorre a morte do tio, que pelas evidências encontradas não pode ser assacada â sanha dos cristãos-velhos.
O tio era um grande cabalista e Berequias seu discípulo. É um homem surpreendentemente dotado de perspicácia e da capacidade de antever o futuro.
O seu assassino tem de ser um dos iniciados na Cabala que frequentam a cave dos Zarco, a qual, para além de lugar secreto de culto, era também onde a família exercia a sua atividade de copistas e de pintores de iluminuras de livros sagrados judeus. Aí se guardavam algumas preciosidades bibliófilas e os livros que depois de prontos eram traficados para a Europa.
À medida que Berequias / Zarco descobre o que ocorreu naquele dia fatídico, vai conhecendo melhor o seu tio, mas também vai questionando a sua própria existência e a sua relação com Deus. Percebe também que tem de deixar Portugal para garantir a continuidade da sua família e, mais surpreendente, que o seu tio antevira que o sacrifício da sua vida poderia ser o acontecimento que despoletaria e garantiria a fuga para Constantinopla dos Zarco.

sábado, 9 de novembro de 2013

O ATALHO DOS NINHOS DE ARANHA, Italo Calvino



Este é o primeiro livro do autor e foi muito bem aceite. Retrata a resistência à dominação germânica e é por alguns integrado no Neorrealismo italiano.
O romance passa-se durante o período em que Benito Mussolini governa Itália (1922-1943) e foi publicado pela 1.ª. vez em 1947, tendo o regime fascista acabado em Itália em 1945.
Pin com a sua «voz rouca de menino velho» confronta todos com quem se cruza, expondo os seus defeitos e vícios, apesar de muitas vezes ser de seguida espancado. Órfão de mãe, abandonado pelo pai, ajudante de sapateiro é um grande observador e conhece todos os podres da viela que habita. Dá-se com os grandes, mas gostava de ser como os outros rapazes, que o desprezam precisamente por se dar com os mais velhos e por ser enfezado. Na taberna canta canções ordinárias que lhe foram ensinadas pelos adultos, que, quando se fartam de o ouvir, lhe batem. Faz tudo isto «para dissipar a solidão».
Um dia, após roubar uma pistola a um marinheiro alemão, acaba por ir parar a um grupo de resistentes, que o tratam razoavelmente, mas que ele provoca como provocava os homens que frequentavam a taberna do seu beco.
Este destacamento, que adopta Pin, é muito especial, pois é formado por elementos desgarrados e pouco conhecedores da razão pela qual lutam.
Só o comissário Kim percebe, uma vez que o facto de estarem juntos é da sua responsabilidade. Aliás este comissário é uma espécie de psicólogo que vai estudando os homens e que para isso cria as situações para analisar os comportamentos dos resistentes. Este comissário pode até reflectir a passagem de Italo Calvino pela resistência, onde como partigiano terá tido oportunidade de analisar comportamentos e motivações.
Em resumo: Pin é uma criança perdida, tão depressa adoptada como abandonada, num mundo de adultos; pode ser mesmo, em alguns momentos, metáfora da própria Itália que não sabe bem se será melhor colaborar com os alemães – nota-se a sedução exercida pelas fardas e são apresentadas personagens que ora lutam por um lado ora pelo outro – ou combatê-los.

Nota: É uma obra muito diferente de Palomar, embora já se possa vislumbrar uma grande capacidade de problematizar o mundo e deixar no ar muitas interrogações.


CALVINO, Italo. O atalho dos ninhos de aranha. Portugália Editora (Coleção: O livro de Bolso. N.º 3).
 


domingo, 20 de outubro de 2013

AS ÁGUAS LIVRES: Cadernos II, Teolinda Gersão



Este é um livro composto por fragmentos de quatro cadernos de notas: Caderno de S. Paulo, Livro dos Sonhos, Caderno de Sintra e um outro que, não sendo identificado, não é nenhum dos anteriores.
Naturalmente, isto resulta numa escrita fragmentária a que apenas é dada alguma coesão pela assunção da autora de que a escrita é isso mesmo: um conjunto de fragmentos que em determinado momento se juntam e fazem sentido “a escrita fragmentária que de repente encaixa num todo.” (p. 150).
De facto, um dos pontos de interesse deste livro é ver como a autora pensa a sua escrita e o modo como ela surge. A escrita é o fulcro de tudo. É uma inevitabilidade para quem sente essa necessidade, uma pulsão incontrolável: “Escrever é como voltar ao local do crime.”(p. 62).
Outra questão abordada é a memória. Memória que engloba pequenos relatos de um mundo em transição. Rituais que apenas subsistem, porque alguém se lembra deles: o processo de produzir o linho; o luto. Mas também uma memória simultaneamente  intelectualizada e afetiva: “Memória é recuperar o que resta dos outros de que também nós somos feitos.”(p. 115).
Os textos do Livro dos Sonhos são muito interessantes, pois criam pequenas histórias, que refletem as incoerências próprias dos sonhos, mas em que várias imagens possuem um sentido crítico muito vincado: uma caixa negra em forma de rochedo para esconder um navio naufragado, etc.
Do Caderno de São Paulo (p. 36-40) sobressai o texto “Animais e plantas” que lembra vários textos de ficção científica em que as plantas e animais se revoltam contra os humanos.
Há por todo o lado crítica ao modo como nos comportamos individualmente e em sociedade. A este propósito o texto “O supermercado como uma missa negra” (p. 62-63) é um bom exemplo: “Lutai por chegar primeiro e tirai das prateleiras tudo o que vos for possível açambarcar.”; “…a vossa prioridade, o vosso único interesse e objectivo é encher a sagrada Barriga…”

GERSÃO, Teolinda. AS ÁGUAS LIVRES: Cadernos II.  Sextante Editora, 2013.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O DESTINO TURÍSTICO, Rui Zink



Visão desencantada da possível evolução de um país pobre para uma “zona”, cujo único rendimento é um tipo de turismo: o de sangue. Confrontado com a pobreza dos seus habitantes e com a oferta melhor e mais barata de praias, bordéis, jogo, etc., a Portugal, pois é, sem dúvida, esse o país invocado, só lhe resta simular a guerra - “Turismo de fealdade, inospitalidade, sangue…” (p.206) -, com atentados, bombas, minas: ser um “paraíso do caos” para cativar turistas que procuram emoções muito fortes ou mesmo a morte. Naturalmente, todos encontram as primeiras e muito poucos a segunda, pois isso não é bom para o negócio.
Por todo o livro está disseminada uma crítica, ora mais direta ora mais subtil. Dois exemplos apenas:
“As pessoas pobres, ao que parece, tinham muito jeito para as línguas. Um traço genético, ou coisa e tal.” (p. 12);
“E Deus queira que lhe dêem um tiro […] isso é que era bem visto, e dava uma imagem que faria não só jornais e televisões, mas também, oxalá, o youtube.” (p. 161)

ZINK, Rui. O destino turístico. Teorema, 2008.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A ESPERA, Rui Zink



 «Isto passou-se há mais de 20 anos”, ou seja, situa-se a ação antes de 1987, por altura da adesão à C.E., agora C.E.E. Esta informação instaura um certo distanciamento do narrador, capaz, assim, de selecionar o que é relevante e de apresentar uma maior objetividade.
Rui, o narrador, que assumidamente se confunde com o autor, a propósito de um livro oferecido e de uma hipotética reportagem sobre a caça à baleia nos Açores, aproveita para criar, numa linguagem muito coloquial, um texto caleidoscópico de referências cinematográficas, musicais, literárias, culturais, com uma bem humorada análise da natureza humana, nomeadamente, de características do povo português. Os baleeiros açoreanos apresentam-se como superiores a esse português tradicional, são uma espécie de heróis por serem capazes de enfrentar o monstro marinho e, perante a deceção e o fracasso, resistirem estoicamente: “Nada daquilo que, seguindo a triste lenda, define o povo português: queixumes, queixinhas, lamentos, ais, lágrimas, suspiros.” (p.112)
O livro conta a história de Rui e Ana, chamemos-lhes repórteres, que, nos Açores conhecem o par Tom e Sharon, dono o primeiro e capitã a segunda de um pequeno veleiro. Tom oferece um livro a Rui, livro este de que vão surgindo extratos ao longo da obra, na qual se misturam estas três camadas. Tudo a propósito de uma ida aos Açores para tentar saber se ainda se caçava a baleia.
O narrador, aparentemente, aceita a caça à baleia quer como tradição cultural açoriana, quer como a luta titânica do homem contra o monstro, o qual frequentemente vence, perdendo, por vezes, vidas e embarcações. No entanto esse narrador, que parece ser Rui Zink, afirma “Ignoro se este é o meu ponto de vista.” (p. 114), não se assumindo portanto defensor da caça ao cetáceo.
O tempo da narrativa na generalidade é-nos apresentado de forma cronológica, alternando as duas histórias e as citações do livro Biografia del Caribe, que Tom lhe ofereceu. Há, no entanto, vários saltos, nomeadamente o início em que o narrador afirma desconhecer o paradeiro e a sorte do par Tom / Sharon e do veleiro errante, ensombrado por Nicole, nome do barco em honra à falecida esposa de Tom, começando, portanto, pelo fim.
Como desfecho, depois de muitas perguntas que ficam sem resposa, ao contrário do que é sugerido na contracapa em que se afirma “…boas perguntas às quais A Espera responde. Enfim, mais ou menos.”, conclui-se com uma bem mais difícil de responder, a não ser com aquilo para que objetivamente serviu na novela[1]: “Para que serve um livro? […] Um livro serve para nos protegermos do mundo.” (p. 149)
Ainda bem que o narrador / autor reconhece “Tenho uma certa tendência para o exagero.” (p. 110)

ZINK, Rui. A Espera. Teorema, 2007.


[1] Para se defender de uns assaltantes.

sábado, 28 de setembro de 2013

Palomar, de Italo Calvino



O livro é composto por vários segmentos, aparentemente sem grande coesão. Estes, tal como consta da nota final, dividem-se em predominantemente descritivos, narrativos ou meditativos, sendo que todos incluem as três vertentes.
O sr. Palomar, nome motivado pelo observatório homónimo em San Diego, Califórnia, observa o mundo que o rodeia: objetos, animais, seres humanos.
O sr. Palomar vai interrogando as suas observações e os seus pensamentos sobre elas. As várias hipóteses que lhe são presentes não resolvem os problemas em causa.
Há momentos em que decide restringir-se ao observável:
«Mas talvez seja exactamente essa desconfiança em relação aos nossos sentimentos que nos impede de nos sentirmos à vontade no universo. Talvez a primeira regra que me devo impor seja: ater-me ao que vejo.» (p. 47)
Outras vira-se para dentro de si ou tenta colocar-se fora si para se observar, como na velha perspectiva de alguém que está à janela a ver-se passar a si próprio.
Vezes há ainda em que os automatismos civilizacionais levam a melhor sobre as suas intenções, como, quando, depois de esperar algum tempo para ser atendido numa loja de queijos em Paris, e aproveitando o tempo de espera para tentar dominar a nomenclatura dos espécimes expostos, acaba por pedir o óbvio, o que os turistas pedem, e não aquilo que pensava ter de experimentar. (p. 79-82)
No fim, há pelo menos duas mensagens interessantes: primeira, antes de se ter quaisquer pretensões a conhecer o mundo / universo, “conhece-te a ti mesmo”; segundo, provavelmente quando alguém tentar ser de tal modo isento que só lhe reste fazer de morto, morrerá.
Sumariando, o sr. Palomar não é totalmente objetivo, mas tenta sê-lo, só que enferma de uma tendência insuperável para problematizar o que vê, o que pensa que vê, o que pensa que pensa… Assim, todas as suas observações resultam em paradoxos. Ele acaba desiludido, porque, quando julga que poderá ter captado o essencial do problema e vislumbrar uma explicação compreensiva do funcionamento do mundo, vê que está perdido.

Uma outra vertente a explorar é a crítica a vários aspectos da nossa sociedade, que está disseminada pelos vários segmentos.
Por exemplo:
Renúncia ao saber livresco: Ao observar Júpiter «…tem de permitir à sua imaginação que se dispa das roupagens que não são as suas, que renuncie a exibir um saber livresco.» (p.47).
Às maleitas das instituições públicas e aos que delas vivem: falando sobre os pombos «…uma progénie degenerada e imunda e infecta que não é doméstica nem selvagem, mas que está integrada nas instituições públicas e, como tal, é inextinguível.» (p. 59)

O livro é interessante de ler, mas não fácil, principalmente se se investir em compreender todos os problemas que o autor nos coloca, através das observações do sr. Palomar. As descrições são muito interessantes e de uma incrível minúcia. É um livro para muitas leituras. Impossível esgotar o seu sentido com uma só leitura.

Nota: As páginas referem-se à edição da Teorema, 2009.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

OS GNOMOS DE GNU, Umberto Eco e Eugenio Carmi



Encontrei, no passado sábado, um livrinho de literatura infanto-juvenil, com texto de Umberto Eco e ilustrações de Eugenio Carmi: Os Gnomos de Gnu.
Ignorava que Eco escrevesse para crianças, mas o livro  surpreendeu-me. É extraordinário. Fiquei a saber que escreveu outros, com o mesmo ilustrador: A bomba e o general e Os três astronautas, ambos editados pela Quetzal Editores em 1989. Tentarei encontrá-los.
Simples e eficaz. A mensagem, de carácter ecológico, transmitida com uma linguagem bela, quase poética, é capaz de cativar pequenos e não tão pequenos.

O imperador da Terra, presume-se que a nossa, quer que lhe descubram algo que ainda não foi descoberto. Perante a impossibilidade de o fazer neste planeta, envia um explorador galáctico que, depois de muita porfia, encontra um pequeno planeta habitado, Gnu, nos confins da galáxia, habitado por pequenos seres, os gnomos de Gnu.
Aterra a sua nave e, perante os habitantes, reclama a descoberta e exige a aceitação da soberania do seu Imperador. Os gnomos respondem-lhe que julgavam ter sido eles a descobrir o descobridor, mas não fazem questão e estão dispostos a aceitar a fantástica superioridade e avanço que este lhes anuncia e propõe.
O explorador mostra-lhes o benefício que isso lhes trará e assesta o seu megatelescópio megagaláctico sobre a Terra. Mostra-lhes os avanços da ciência e da tecnologia.
Mas os gnomos vão espreitando e veem: cidades completamente obnubiladas por fumo de fábricas; o mar poluído por descargas de petróleo, lixo…; o campo pejado de lixo; o trânsito caótico de veículos; hospitais para dar pulmões a quem fumou, curar infecções de quem se drogou…
Até que os gnomos não querem ver mais e propõem-lhe ir à Terra para “nos” descobrir. Manteriam em bom estado os jardins, plantariam árvores novas, cuidariam das velhas, limpavam os plásticos…, criariam filtros para as chaminés, ensinar-nos-iam a passear a pé… e após alguns anos a Terra seria tão bela como Gnu.
O explorador regressou com essa proposta para o Imperador, mas logo toda a máquina política e burocrática se opôs, emperrando de tal modo o processo que, até hoje, os gnomos de Gnu não obtiveram resposta à sua oferta.
Talvez um dia deixaremos vir os gnomos de Gnu à Terra.
Mas, mesmo que eles não venham, não poderíamos fazer nos aquilo que eles se propunham fazer?

Numa biblioteca escolar dará, certamente, uma bela “Hora do Conto”.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

ABERTURA, de Carlos Monteiro dos Santos



ABERTURA

Ao Daniel Filipe

Este é o tempo

De incendiar a palavra de quem
no combate   sabe inventar o amor

Este é o tempo

Dado como destino
àqueles   donos de nada
no mundo tornados rebeldes
de novo   insurgidos na vida

Perdoada a nossa antiga traição
entra-nos   de súbito
em casa   um inesperado raio de sol

É como   pela primeira vez
ver   finalmente   alguém
à nossa estender a sua mão


Carlos Monteiro dos Santos, in Uma Parcela do Todo: Antologia Poética (1958-1990), Campo das Letras, 2001 (p. 33)

Selecionei este poema, primeiro porque é dedicado a Daniel Filipe e, intertextualmente, se liga a poemas como “A invenção do amor”; segundo pelo seu apelo à ação «Este é o tempo», mas ação em que o incêncio e combate do início se transformam no raio de sol e no estender de mão do final; terceiro, porque, numa época de crise, que foi a dele, o poema poderá iluminar a crise, que é a nossa, com esta belíssima imagem de fraternidade e de esperança.

Sobre o autor, transcreve-se a nota da contracapa.

Carlos Monteiro dos Santos

«Nasceu em Sena (Beira), Moçambique, em 1934.
Foi publicitário, editor e técnico editorial em diversas agências de publicidade portuguesas e no Instituto do Livro e do Disco de Moçambique, em Maputo, do qual foi posteriormente delegado em Portugal.
Poemas da sua autoria estão incluídos em diversas antologias, designadamente: No Reino de Caliban, Manuel Ferreira; Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de Cinquenta, J.B. Martinho, e Vinte Poetas de Moçambique, Maria José Mendonça e Nélson Saúte.»

sábado, 31 de agosto de 2013

O VERÃO DE 2012, Paulo Varela Gomes, Tinta da China, 2013



Sobre o autor transcreve-se a nótula incluída no Centro de Estudos Sociais –

Laboratório Associado da Universidade de Coimbra:

“Paulo Varela Gomes nasceu em 1952, é licenciado em História, mestre em História da Arte e doutorou-se em História da Arquitectura. É professor da Universidade de Coimbra. É professor e conferencista convidado de várias Universidades portuguesas e não-portuguesas.Foi representante da Fundação Oriente na India (em Goa) em 1996-1998 e em 2007-2009. É autor de vários artigos e livros nas suas áreas de especialização. Foi durante muitos anos crítico de arquitectura e arte. Foi autor e apresentador de documentários de televisão. É cronista regular da imprensa.”

Ao contrário de outros que defendem que não há coincidências, este livro está cheio delas:
O autor, o psiquiatra e o paciente, P., todos nomeados pela letra «p», parecem ser várias facetas da mesma entidade;
P. encontra várias semelhanças com o presente e com a sua visão da sociedade portuguesa nos diários de William Beckford;
O mesmo P. vê também analogias entre a vida de Julia Mandeville de Francis Brooke e a situação da sua esposa;
Só uma coincidência permite que o desfecho aconteça da forma que P. deseja…

O livro começa por estabelecer que quem conta a história é uma espécie de editor, pois escolhe de entre os escritos de P. e selecciona das suas conversas e consultas de psiquiatria o que é relevante para contar a história.
Esta história é bem simples. P. é informado que tem cancro e que tem pouco tempo de vida. Então este homem, deprimido mas lúcido, procura respostas, pondo tudo em causa: a sua própria vivência, o valor da vida, as suas relações com a sociedade circundante e com a Natureza. Há um cruzamento de várias vozes. Desta polifonia surge repetidamente a importância da vida perante a certeza da morte.
O livro explora a tensão entre a vida e a morte e várias perspectivas de as encarar.
Em P., a partir de que sabe que vai morrer proximamente há como que uma hipertrofia da visão que o leva a observar aquilo que antes não vira, e a pensar sobre vários temas a que não dera tanta importância: como prolongar a vida?, o cancro é doença de civilizados?, etc.
Paralelamente o livro é muito crítico em relação aos portugueses. Refere testemunhos de viajantes estrangeiros que deixaram críticas violentas aos hábitos civilizacionais do nosso povo. No entanto, há também uma crítica a esses que nos criticam e não escrevem mais que generalizações, afirmando o narrador o seu desconhecimento da história: Os viajantes estrangeiros do séc. XVIII viam Portugal como se do oriente se tratasse. (p. 68 e ss.). Mas, num momento seguinte, afirma que os portugueses passaram de pobres a pobres de espírito, consubstanciando esta afirmação com a construção civil: as construções que foram surgindo e descaracterizando o país, e enchendo os bolsos a alguns. (p. 79 e ss,)
Há críticas à política, quer ao modo como os povos do norte nos vêem: «A degradação política e económica do sul da Europa em relação ao norte era percebida também como degradação social» (p. 62), querendo significar com isto que os países do sul integravam um ror de africanos; quer a nível nacional, entre outras, o favorecimento descarado de classes e grupos sociais, principalmente a dos políticos. Mas o povo que elege tais governantes não fica de fora: «O voto, a liberdade de palavra ou de propaganda são o pão que se dá aos imbecis mergulhados até ao inconsciente na atmosfera falsificada do circo.» (p.35)
Outras críticas afloradas: à caça - «…recomeço da época de caça que […] tristeza»; à inércia e abulia dos portugueses, nas palavras de P. - «…gordos, estão gordos os portugueses, são uma espécie de americanos pequeninos e escuros, bolas de sebo e de lixo.» (p. 88), naturalmente que esta frase implica também uma crítica severa aos americanos; ao uso e abuso dos telemóveis - «…os pequenos electrodomésticos para perguntar “Onde é que estás?” coloridos e barulhentos como uma vida postiça.» (p. 91)

Ainda sobre a dicotomia vida/morte é muito interessante a descrição que se faz de uma povoação ao sul do país, mostrando a importância da forma como se olha a realidade, primeiro por P., depois pelo seu psiquiatra. Transcreve-se um pequeno excerto:
«…um prédio de dois andares […] simplório e tosco, podre de velho, como se estivessem acumulados mil anos de miséria no betão, nas pinturas, nos caixilhos […].(p. 89-90)

«São belíssimas as casas construídas nas primeiras duas décadas do século XX que vemos pela vila, quase todas ostentando orgulhosamente a data da construção sobre a porta […]. Têm vãos com molduras de cantaria: ombreiras esculpidas e vergas curvas com florões em cima. Nas açoteias há platibandas decoradas com estuque ou pedra com desenhos do mesmo tipo dos vãos…» (p. 94)

Naturalmente que estas duas visões que, de uma forma grosseira, podiam ser equiparadas a morte e a vida, não são unívocas. O primeiro testemunho têm algumas notas de reconhecimento de um valor estético existente e anterior ao surgimento do turismo: «…esconde a vista e tira o vento às casas antigas da vila, feitas quando havia um Portugal bem público, respeito mútuo e lei» (p. 90); o segundo apresenta também algumas notas disfóricas: «pequenos miranetes que permitiam ver a ria […] mas que agora não autorizam mais do que a vista das traseiras de prédios que o turismo fez erguer…» (p. 95).

O livro é extremamente rico, com uma linguagem cuidada e muitas referências cultas. Apetece completar a sua leitura com as de muitos dos autores e com a contemplação dos pintores citados, v.g., William Beckford, Gregório Felipe Franchi, William Hoghart, John Trusler, Frances Brooke, Curzio Malaparte, etc.

Algumas frases que muito apreciei:
«…a biblioteca pública onde aprendera o que são livros e para que servem.» (p. 16).
«Quem não consegue experimentar o amor sem causa não pode encontrar em parte alguma causa bastante para o amor.» (p. 52).
«O pânico é corporal, a coragem é mental, é o domínio do corpo pela mente.» (p. 124-125).

Nota: Em nenhum momento se pretendeu contar a história. São apenas notas, quase que desconexas, sobre a leitura.


Faleceu hoje, 30 de abril de 2016, o escritor Paulo  Varela Gomes, depois de cerca de quatro anos de luta contra o cancro.
Este escreveu em abril do ano passado um texto intitulado "Morrer é mais difícil do que parece".

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O ÚLTIMO ESPECTÁCULO, Manuel do Nascimento



Manuel do Nascimento nasceu em Monchique (onde a Escola Básica 2,3 ostenta o seu nome) em 1912 e faleceu em 1966. Trabalhou numa mina. Contatou com a realidade e apercebeu-se de que esta era bem diferente da idealização que dela se fazia. O conflito que existe dentro de si reflete-se nos seus contos.
O seu estilo e temáticas, pela crítica social e pelos protagonistas, podem inserir-se na corrente literário do neorrealismo, no entanto apresenta uma profusão de figuras de estilo[1] que aquela corrente depurou em grande parte.
O livro revela-se fácil de ler e em alguns momentos lembra contos de Manuel da Fonseca.

O último espectáculo é um livro de contos de 1955 que começa com o conto homónimo.
O título refere-se a um espetáculo de circo. Trata uma realidade comum na 1.ª metade do séc. XX: o circo ambulante, pobre e esfarrapado, mas cujo dono já viveu momentos de glória.
O dono, alcoólico, não faz dinheiro suficiente para pagar aos artistas, sonha com o passado, enquanto aqueles ameaçam deixá-lo se não receberem o que lhes é devido.
O narrador de 3.ª pessoa (heterodiegético) aproveita para generalizar sobre: as crianças exploradas e famélicas; a equilibrista bonita pronta para fugir dali, assim que algum homem lhe acene com uma perspetiva, ou ilusão, de futuro; o trapezista jovem e conflituoso. Tudo isto inserido numa perspetiva geográfica e social, ainda que não identificada, se infere sem a do Alentejo, em que muitos dos que veem o circo julgam que esses é que levam uma vida boa.

NADA DE IMPORTÂNCIA
Aqui, o narrador de 1.ª pessoa (autodiegético), engenheiro numa mina, conta o seu desagrado pela situação dos mineiros: condições de vida e trabalho. A sua angústia vai-se avolumando com a recordação de vários problemas ocorridos, redimida no final, quando é possível salvar alguns mineiros soterrados numa derrocada.
De qualquer modo a escolha do narrador autodiegético é um pouco forçada porque, no fim, não se justifica que o conto acabe sem resolver a situação que narra (narrativa aberta).

O VIZINHO
Narrador de 1.ª pessoa (homodiegético), testemunha que vai contando o que vê e sobre isso reflete.
Retrata a miséria dos trabalhadores braçais de sol a sol, vivendo em grandes famílias em casebres insalubres, alguns minados de doenças, capazes de, como nos dias que correm outros pobres comem o que encontram no lixo, comer o que aqueles com melhor sorte – a família do narrador – tinham colocado no balde dos porcos.

SAPO E LAGARTO
«-Sapo e Lagarto, o meu pai matou um porco.»
Motete com que os rapazes abusam de um pobre, ainda mais pobre do que eles, evidenciando a crueldade de um povo que se vinga naqueles que julga inferiores das ofensas daqueles que vê como superiores.
«As pragas que devem atirar-se ao tempo, à terra e à vida caem todas sobre os ombros fracos do velho.» (p.92). Veja-se que em nenhum momento se materializa a responsabilidade em outros homens. Medo ou consciência da censura?
Por fim, num dia de trabalho extenuante, quando o pobre velho, objeto de todo o gozo, aparece e o povo exausto não o invetiva, ele estranha e «descarrega contra si mesmo o veneno que trazia lá dentro…» (p. 94).

RESPEITA A MINHA DOR
Maria da Luz, casada há seis anos, aborrece a vida monótona que leva, a rotina da sua relação matrimonial. Conhece um pintor que encarna o seu ideal de amor. Encontra-se com ele algumas vezes e, então, decide-se acabar com o marido. Quando o confronta, incapaz de lhe revelar a sua relação com o pintor, queixa-se da vida que ele lhe dá. Este não a compreende, pois faz-lhe todas as vontades. Pensa que estará doente, que são nervos.
Ele deixa-a sozinha. Ela chora. Quando regressa à realidade, revê a sua vida, olha para «a pulseira cravejada de diamantes» e murmura: «-O António [marido] tem razão. São os nervos, os nervos malditos. Sim, devo ir ao médico.»
Nota: o título refere-se a uma frase marcante da carta que começa a escrever ao pintor para lhe dizer que não o verá mais. Mas destrói essa carta considerando que não lhe deve nenhuma justificação.

A FUGA
Um miúdo, com 10 anos, tendo vivido sempre em grande isolamento, um dia vai à feira da vila.
Vem de lá deslumbrado, só pensa no que viu, descura o trabalho de ajuda à família: sonha.
Pouco tempo depois, de madrugada foge e enceta o caminho para a vila, maravilhado por tudo ser novidade. Porém, quando chega à vila deserta – “como tudo estava diferente do dia de feira”-, procurou um homem que lhe oferecera trabalho e, de imediato, começou a trabalhar. Trabalho demasiado pesado para uma criança a troco de umas papas de milho e “toda a água que quisesse beber.”
Lembra o provérbio inglês “Out of the frying pan, into the fire.”

SILÊNCIO ESFARPADO
Contrabando. A primeira vez: medo, ansiedade, angústia. Como tudo corre bem vem a alegria pelo sucesso e o pagamento das dívidas.
Outra vez conduz as mulas com o sócio pelos ermos. Tudo vai correndo bem até que a situação de desafogo conseguida se torna notada e suscita a inveja do povo.
Prenúncio de desgraça. Agora é já de automóvel que a mercadoria viaja. A guarda está alerta e manda parar o carro. Eles não param, A guarda dispara e fere o companheiro.
Pensa livrar-se do sócio, mas decide esconder a mercadoria e levá-lo ao hospital.
Parece ser a sua oportunidade de arrepiar caminho, mas começa a pensar já ser dono de todo o negócio: «-Desta vez será tudo meu!»
Da necessidade à cobiça, à ambição desmedida.

A ESPERANÇA VOLTOU DE MANHÃ
Retrata o problema das cheias, o medo de perder as colheitas.
Até que de manhã para a chuva o casal protagonista se dirige à leira das batatas e constata que tinham escapado. Esta pequena alegria leva à aceitação e superação das suas dificuldades.

SUSPEITA
Isa acha estranho o comportamento do marido.
Ele reflete, sente-se culpado, porque se interessou por outra mulher, com a qual se encontrou algumas vezes em contexto de trabalho. Depois passaram um dia juntos. Ele pensa que tem de contar à mulher, Isa, mas mais tarde, com distanciamento.

Alguns exemplos de recursos estilísticos usados:
«casas… beijando o pó da estrada.»
«um homem… que a roubasse àquela miséria.»
«[Nina e a irmã] lembravam dois pequenos náufragos à deriva num mar encapelado.»
«As casas da curva da estrada lembram um harmónio velho apertado nos joelhos de quem lhe preme as teclas.»
«D. Luz tinha passado a noite numa insónia doce.»


[1] Alguns exemplos no fim.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O LANCE DE VÉNUS, Steven Saylor



Ingénuo! Julgava eu que esta trapalhada de afirmar isto e o seu contrário era uma característica desenvolvida pelos (políticos) portugueses. Nada mais errado. Não é mais do que uma herança que nos legaram os conquistadores romanos. Nem Viriato nos valeu.

“-Destruição de credibilidade […] a pedra de toque da jurisprudência romana. O acusador recorre a todos os meios para destruir a reputação do acusado, o que faz com que pareça mais provável que ele tenha cometido o crime de que é acusado. Depois, o defensor faz a mesma coisa, mas ao contrário, acusando os acusadores[1] de diversas abominações, a fim de destruir a sua credibilidade,” (p. 71)

Vamos então ao livro:
Este livro faz parte de uma série denominada Sub-rosa. Inclui: Sangue Romano, O Abraço de Némesis, O Enigma de Catilina, O Lance de Vénus, O Crime na Via Ápia e Rubicão (publicados em português).

O título vem de um jogo de dados romano, que no livro aparece referido numa taberna e bordel, em que o jogador ao lançar os quatro dados obtém um valor diferente em cada um deles.

Uma espécie de resumo:


Em 56 A.C., Díon, filósofo e embaixador egípcio, procura Gordiano, o Descobridor, que em jovem tinha sido seu aluno informal nas escadas da biblioteca de Alexandria. Disfarçado e aterrorizado por toda a delegação egípcia ter sido chacinada vem pedir ajuda a Gordiano para tentar continuar vivo.
Nessa mesma noite Díon será assassinado.
Gordiano é contratado para investigar a morte de Díon por Clódia, uma bela “femme fatale”. A procura de Gordiano revela a depravação da sociedade romana a vários níveis, nomeadamente política e de costumes. A verdade é indiferente em tribunal. O que vale são as orações dos acusadores e da defesa. Os testemunhos são despiciendos. Os homens e mulheres são facilmente descartáveis, principalmente os escravos. Em conclusão, não interessam os factos mas sim as palavras. Naturalmente, o fim é surpreendente: Díon foi morto por…
Nota: Os depoimentos dos escravos só eram válidos se obtidos sob tortura pelos oficiais do tribunal.
 


É espectacular a argumentação perante o Senado. Incrível como as orações, discursos, de Marco Célio e Cícero, no julgamento do primeiro, viram a acusação do avesso.

Frase de que gostei particularmente:

“Acho que o cabelo grisalho e as rugas são uma espécie de disfarce involuntário usado por todas as pessoas quando chegam a certa idade.” (p. 25)

Quem tiver oportunidade deverá ler os títulos pela ordem que foram publicados, pois fará mais sentido em relação aos factos históricos.


[1] Leia-se queixosos.