Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


domingo, 20 de outubro de 2013

AS ÁGUAS LIVRES: Cadernos II, Teolinda Gersão



Este é um livro composto por fragmentos de quatro cadernos de notas: Caderno de S. Paulo, Livro dos Sonhos, Caderno de Sintra e um outro que, não sendo identificado, não é nenhum dos anteriores.
Naturalmente, isto resulta numa escrita fragmentária a que apenas é dada alguma coesão pela assunção da autora de que a escrita é isso mesmo: um conjunto de fragmentos que em determinado momento se juntam e fazem sentido “a escrita fragmentária que de repente encaixa num todo.” (p. 150).
De facto, um dos pontos de interesse deste livro é ver como a autora pensa a sua escrita e o modo como ela surge. A escrita é o fulcro de tudo. É uma inevitabilidade para quem sente essa necessidade, uma pulsão incontrolável: “Escrever é como voltar ao local do crime.”(p. 62).
Outra questão abordada é a memória. Memória que engloba pequenos relatos de um mundo em transição. Rituais que apenas subsistem, porque alguém se lembra deles: o processo de produzir o linho; o luto. Mas também uma memória simultaneamente  intelectualizada e afetiva: “Memória é recuperar o que resta dos outros de que também nós somos feitos.”(p. 115).
Os textos do Livro dos Sonhos são muito interessantes, pois criam pequenas histórias, que refletem as incoerências próprias dos sonhos, mas em que várias imagens possuem um sentido crítico muito vincado: uma caixa negra em forma de rochedo para esconder um navio naufragado, etc.
Do Caderno de São Paulo (p. 36-40) sobressai o texto “Animais e plantas” que lembra vários textos de ficção científica em que as plantas e animais se revoltam contra os humanos.
Há por todo o lado crítica ao modo como nos comportamos individualmente e em sociedade. A este propósito o texto “O supermercado como uma missa negra” (p. 62-63) é um bom exemplo: “Lutai por chegar primeiro e tirai das prateleiras tudo o que vos for possível açambarcar.”; “…a vossa prioridade, o vosso único interesse e objectivo é encher a sagrada Barriga…”

GERSÃO, Teolinda. AS ÁGUAS LIVRES: Cadernos II.  Sextante Editora, 2013.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O DESTINO TURÍSTICO, Rui Zink



Visão desencantada da possível evolução de um país pobre para uma “zona”, cujo único rendimento é um tipo de turismo: o de sangue. Confrontado com a pobreza dos seus habitantes e com a oferta melhor e mais barata de praias, bordéis, jogo, etc., a Portugal, pois é, sem dúvida, esse o país invocado, só lhe resta simular a guerra - “Turismo de fealdade, inospitalidade, sangue…” (p.206) -, com atentados, bombas, minas: ser um “paraíso do caos” para cativar turistas que procuram emoções muito fortes ou mesmo a morte. Naturalmente, todos encontram as primeiras e muito poucos a segunda, pois isso não é bom para o negócio.
Por todo o livro está disseminada uma crítica, ora mais direta ora mais subtil. Dois exemplos apenas:
“As pessoas pobres, ao que parece, tinham muito jeito para as línguas. Um traço genético, ou coisa e tal.” (p. 12);
“E Deus queira que lhe dêem um tiro […] isso é que era bem visto, e dava uma imagem que faria não só jornais e televisões, mas também, oxalá, o youtube.” (p. 161)

ZINK, Rui. O destino turístico. Teorema, 2008.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A ESPERA, Rui Zink



 «Isto passou-se há mais de 20 anos”, ou seja, situa-se a ação antes de 1987, por altura da adesão à C.E., agora C.E.E. Esta informação instaura um certo distanciamento do narrador, capaz, assim, de selecionar o que é relevante e de apresentar uma maior objetividade.
Rui, o narrador, que assumidamente se confunde com o autor, a propósito de um livro oferecido e de uma hipotética reportagem sobre a caça à baleia nos Açores, aproveita para criar, numa linguagem muito coloquial, um texto caleidoscópico de referências cinematográficas, musicais, literárias, culturais, com uma bem humorada análise da natureza humana, nomeadamente, de características do povo português. Os baleeiros açoreanos apresentam-se como superiores a esse português tradicional, são uma espécie de heróis por serem capazes de enfrentar o monstro marinho e, perante a deceção e o fracasso, resistirem estoicamente: “Nada daquilo que, seguindo a triste lenda, define o povo português: queixumes, queixinhas, lamentos, ais, lágrimas, suspiros.” (p.112)
O livro conta a história de Rui e Ana, chamemos-lhes repórteres, que, nos Açores conhecem o par Tom e Sharon, dono o primeiro e capitã a segunda de um pequeno veleiro. Tom oferece um livro a Rui, livro este de que vão surgindo extratos ao longo da obra, na qual se misturam estas três camadas. Tudo a propósito de uma ida aos Açores para tentar saber se ainda se caçava a baleia.
O narrador, aparentemente, aceita a caça à baleia quer como tradição cultural açoriana, quer como a luta titânica do homem contra o monstro, o qual frequentemente vence, perdendo, por vezes, vidas e embarcações. No entanto esse narrador, que parece ser Rui Zink, afirma “Ignoro se este é o meu ponto de vista.” (p. 114), não se assumindo portanto defensor da caça ao cetáceo.
O tempo da narrativa na generalidade é-nos apresentado de forma cronológica, alternando as duas histórias e as citações do livro Biografia del Caribe, que Tom lhe ofereceu. Há, no entanto, vários saltos, nomeadamente o início em que o narrador afirma desconhecer o paradeiro e a sorte do par Tom / Sharon e do veleiro errante, ensombrado por Nicole, nome do barco em honra à falecida esposa de Tom, começando, portanto, pelo fim.
Como desfecho, depois de muitas perguntas que ficam sem resposa, ao contrário do que é sugerido na contracapa em que se afirma “…boas perguntas às quais A Espera responde. Enfim, mais ou menos.”, conclui-se com uma bem mais difícil de responder, a não ser com aquilo para que objetivamente serviu na novela[1]: “Para que serve um livro? […] Um livro serve para nos protegermos do mundo.” (p. 149)
Ainda bem que o narrador / autor reconhece “Tenho uma certa tendência para o exagero.” (p. 110)

ZINK, Rui. A Espera. Teorema, 2007.


[1] Para se defender de uns assaltantes.