Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


quinta-feira, 16 de abril de 2015

O OURO DOS CORCUNDAS. Paulo Moreiras





Mais uma vez, tal como no romance A demanda de D. Fuas Bragatela, o autor elege como protagonista da sua história um homem humilde, empurrado pelo destino para a delinquência e a malandragem, muito na tradição do pícaro.
Aqui a personagem principal, Vicente Maria, na tentativa de se libertar das peias que o forçam ao roubo e a outros estratagemas de sobrevivência, bate a todas as portas, procurando uma oportunidade de viver dentro do enquadramento legal, para endireitar a sua vida. Porém, pela influência de um homem poderoso, despeitado e invejoso do seu sucesso amoroso, todas as vias se lhe fecham.
Sem saída para este problema, conluia-se com um grupo de assaltantes para roubarem uns fidalgos. Por sorte ou azar roubam uma outra carruagem que transporta ouro do rei D. Miguel, romanescamente destinado a fazer pender a guerra que mantém com seu irmão D. Pedro a seu favor. Isto era demais para estes pequenos delinquentes. Os soldados, com marcas de crueldade, seguem as pistas e depressa localizam os responsáveis e matam todos menos Vicente Maria, que vem a ser preso posteriormente. Graças à sua esperteza é levado à presença do rei e convence-o a dar-lhe a liberdade em troca da localização do ouro.
Recuperado o ouro, Vicente Maria é solto e é-lhe dado um prazo breve para sair do país.
Virá a consegui-lo com a ajuda de um amigo, não sem antes ter de enfrentar em grande desvantagem o seu poderoso inimigo que acaba por ser morto pela amada de Vicente, violada pelo mesmo na juventude.
Neste universo romanesco, pejado de uma linguagem arcaizante, somos levados a pensar que este homem insignificante poderá ter mudado a História de Portugal.

MOREIRAS, Paulo. O ouro dos corcundas. Casa das Letras, 2011.

terça-feira, 7 de abril de 2015

O OSSO DA BORBOLETA, Rui Cardoso Martins



História de um homem que se esconde da polícia no sótão de uma casa na Figueira da Foz. Esta casa, aliás como outros espaços mencionados, é facilmente identificável.
A história do narrador está relacionada com outras personagens, das quais vamos sabendo o seu percurso existencial. É através destas que vamos sabendo a sua história, nomeadamente através de uma vizinha que se vem a revelar a personagem mais importante do romance. Há ainda, lateralmente, a história de um casal de jovens judeus refugiados que tinham habitado aquele mesmo sótão, onde agora se encontra o auto-suficiente narrador.
Borboleta / D. Purificação, que fora uma bela mulher e ajudara a cativar turistas e veraneantes para o jogo, depois de ter tido um grande dissabor com a perda do seu amor espanhol, que lhe deixou uma filha para criar, vem a revelar-se dura, daí o título emprestado de um verso de um poeta brasileiro, como homem que provavelmente foi responsável por ela ter sido abandonada. Este homem é corrupto e lascivo e tenta agora recuperar algum do dinheiro sujo que investiu, ironicamente, no homem que é amante da filha de Borboleta, revelando-se uma espécie de circularidade da história de mãe e filha.
Nas descrições de lugares e de personagens abundam alfinetadas ao carácter de gruposn sociais e mesmo de algumas pessoas quase que identificadas e a factos ocorridos na Figueira da Foz ao longo de várias gerações.
O autor escreve de forma sóbria e eficaz e o conhecimento da vida na Figueira da Foz veio certamente da sua permanência nesta cidade, durante o tempo em que foi casado com a jornalista, tradutora e escritora, Tereza Coelho, que infelizmente já nos deixou.
Mesmo que não nos interessemos pela Figueira da Foz, vale a pena ler!

MARTINS, Rui Cardoso. O osso da borboleta. Tinta da China, 2014.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

ÀS CAVALITAS DO TEMPO, Eduardo Olímpio



Nunca tinha ouvido falar deste autor, mas, reconheço, é
interessante. Encontrei este pequeno livro, publicado um mês após o 25 de Abril, com mini-crónicas. A linguagem é algo surrealista. Retrata em muitos dos textos a vivência de gente do campo, essencialmente do Alentejo, deslocada para a cidade de Lisboa. Nas suas crónicas enfatiza o ridículo de várias situações com um humor muito interessante.

Com a devida vénia ao autor, e apenas com o fim de promover a leitura, transcrevo um dos textos que muito me tocou:

love story a preto e branco

«ia um tempo danado. o odre do céu despejava chuva há mais de duas semanas e os homens bis cavam os dias na venda da chancuda, à saída da aldeia, de quem vai para beja.
nem o nome valia à terra, já que santa vitória era um ensopado de fome. braços caídos, enxadas enxutas de chão, forno frio, lareira sem tanganhos, aquele era um inverno de morte. papas de milho, migas e polme tudo ia fugindo, casa a casa, até ao fundo da aldeia.
o chico ferrador foi encontrado morto pelo frio, na enxerga de vimes. tinha setenta anos e ferrara mais parelhas de mulas que cabelos tinha na cabeça. sempre na forja, sempre a lidar com o fogo, morreu ali, enrolado no frio daquele janeiro de má sina.
foi então que a joana calapez, com o tempo incompleto, se lembrou de parir: só ossos e aquela barriga do tamanho duma bolota ninguém jogava um valete pela cria. – e sabem o que veio? dois: dois gaiatos com dois quilos cada um, redondos, pequeninos, uns repolhos de carne. e lindos! ou lindos talvez não mas engraçados, porreiros.
joana calapez ficou nem viva nem morta, estiraçada na cama. a arca vazia. o homem a olhar a chuva, fumando cigarros feitos das barbas do milho. ele estava assim à porta, a fumar, quando viu os ciganos chegarem e atarem os burros ao sobreiro grande. depois começaram a armar as tendas mais rotas que remendadas: eram uns doze ou treze, mas as mais eram as mulheres. sujos, encharcados, falavam aquela espanholada que só eles entendem.
dai a nada veio a cigana alta com um gaiato de dias pendurado ao peito. a mamar. - pelas alminhas de quem tem no céu e as criaturas que mais quer não me dava uma colherinha de açúcar para ver se calo três criaturinhas de deus que ali tenho para criar?
- o homem foi lá ao fundo da casa e rebuscou na arca: o cartucho estava mirrado mas ainda se raspavam bem duas colheres. a mulher, do escuro do quarto perguntou: está ai alguém? e os recém-nascidos acordaram a berrar do sono da fome. - valha-me santa aparecida mais nossa senhora de guadalupe que estes anjinhos não têm mama, benzeu-se a cigana. e puxou do outro peito, peito longo, largo, cheio, adonde o leite corria como seiva dum pinheiro. mamada a um, mamada ao outro. depois ao filho. de novo a um, de novo ao outro. e ao filho. e voltou à noite. e de manhã. muitas noites. muitos dias. «meus ricos anjinhos! benzia-se».
numa madrugada a árvore não tinha burros. nem tendas. nem ciganos.
- numa alcofa, à porta da casa, corados e reboludos brincavam os filhos de joana calapez.»

OLÍMPIO, Eduardo. Às Cavalitas do Tempo. Prelo, 1974.