A história enraíza na tradição do pícaro, no Lazarillo de Tormes, passando pelo Malhadinhas
de Aquilino, até, v.g., nos recentes romances de Paulo Moreiras: A demanda de D. Fuas Bragatela e O ouro dos corcundas.
Firmino Pote, um alentejano da aldeia de Fernão Baixo,
nascido para trabalhar a terra de sol a sol, consegue fugir à tirania da
pobreza através de muita imaginação, uma boa figura e ausência de
escrúpulos, ainda que ocasionalmente seja
sobrepujado por uma educação católica que o faz temer os símbolos da religião.
O livro começa com a descoberta da morte de Firmino, dito
Dom Rufia, que imediatamente se percebe resultar de um crime, dado que foi
baleado.
O caricato da história é que, ao longo da noite do velório,
se vão apresentando várias viúvas:
Domitília, de Almodôvar; Acélia, de Moura; Joaquina Fialho, casado, dita
Joaquinita, de Alvito; Maria de Jesus, de Beja; (Flôr do Carmo, de Beja, que
não vem enganada, mas cobrar os seus serviços); D. Cremilde, de Palmela, que se
apresenta com o seu marido; Mariana, das redondezas de Viana do Alentejo, única
à qual confessou a sua vida dupla; Antónia do Preto, de Satara, aldeia próxima
de Fernão Baixo, que se vem a saber o enganou a ele; e ainda uma personagem que
já de manhã, carregada de preto, surge e logo se perde na multidão. Acresce a
possibilidade, que fica indiciada na posição de Armindo Costureira na fila das
viúvas, assim como no final o seu aparecimento no cortejo fúnebre vestido de mulher,
de existir uma relação homossexual.
A primeira viúva,
que de facto era viúva, Domitília, foi a que lhe forneceu as asas para voar
pelo Alentejo, tentando ser rico e conquistar as outras viúvas, pois
disponibiliza-lhe o carro do defunto e dá-lhe meios, roupas, dinheiro, para
poder viajar. As ausências justifica-as Dom Rufia com a mãe doente que já não
existe. Numa outra jogada de mestre apodera-se das jóias de Domitília e passa a
ser ourives em Moura. Depois vem a ser médico em Alvito, advogado em Beja,
diplomata em Palmela… um homem que é analfabeto.
Todas estas histórias e ainda outras da juventude do finado
são apresentadas no velório, contadas pelos próprios intervenientes ou pela tia
de Dom Rufia, que o criara.
As histórias, muitas
são autênticas anedotas, valem bem a leitura. A de quem foi o matador até
se esquece. Mas no fim, quando nos surge a pergunta, a resposta aparece e não é
o que esperávamos depois de vermos tantas mulheres enganadas.
No entanto, em relação à estratégia narrativa, salvo melhor
opinião, não parece ser muito lógica ao
nível da validação verídica.
Vejamos, o narrador, numa espécie de prefácio, assume-se
como um familiar («…um longínquo tio que me corre nas veias…», pág. 11) de
Firmino Pote, i.e., Dom Rufia, que por via de seu avô, Attílio Pote, conhece a
história, recolhida por este último durante a sua passagem por Fernão Baixo, em
onze dias, durante a lua de mel. Testemunhos recolhidos através do tio de
Firmino, Homero Dente d’Alho, que acompanhou o sobrinho em algumas das suas
aventuras, e de vizinhos. Homero não sabia tudo, mesmo que Firmino lhe tivesse
contado pormenorizadamente como tinha conquistado as suas viúvas. Ora, na
narração assume-se frequentemente como omnisciente – que tudo sabe, mesmo os
pensamentos das personagens –, e ocorrem mesmo diversas focalizações internas, –
a história a ser contada pelos olhos de uma personagem –, que não encaixam com
esta estratégia de narrador editor.
Ainda sobre a narração não é facilmente aceitável que no
princípio o narrador afirme que «eu» cosi os bocados da história e pede
desculpa por ter de o fazer «nas palavras que possa», e depois em vários
momentos passar para um nós: «…a nossa fonte, diga-se com justiça, nunca foi
moralista.», pág. 152: «…viemos [quem?] mais tarde a ter a informação de
como…», pág. 187.
Importa, talvez, referir ainda a personagem de Juan de los
Fenómenos, que aparece para reforçar a ubiquidade de Firmino. Na sua
deambulação pelo Alentejo à cata de fenómenos, apercebe-se de que encontra o
mesmo homem em vários lugares e com diferentes estatutos. No fim, antes de
regressar à sua terra natal, o Chile, interessa-se por Dom Rufia e procura
deslindar mais este fenómeno, mas não tem sucesso, pois o tio, a partir do qual
ele pretende conseguir informação, apercebe-se da estratégia daquele e não
fala. Levanta o problema se o caso de Pote não é mais do que um dos muitos
fenómenos que Juan investiga, como unhas que crescem da noite para o dia, olhos
que mudam de cor, etc.
CAMPANIÇO, Carlos. As viúvas de Dom Rufia. Casa das
Letras, 2016.