Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


quinta-feira, 29 de setembro de 2016

AS VIÚVAS DE DOM RUFIA, Carlos Campaniço




A história enraíza na tradição do pícaro, no Lazarillo de Tormes, passando pelo Malhadinhas de Aquilino, até, v.g., nos recentes romances de Paulo Moreiras: A demanda de D. Fuas Bragatela e O ouro dos corcundas.
Firmino Pote, um alentejano da aldeia de Fernão Baixo, nascido para trabalhar a terra de sol a sol, consegue fugir à tirania da pobreza através de muita imaginação, uma boa figura e ausência de escrúpulos,  ainda que ocasionalmente seja sobrepujado por uma educação católica que o faz temer os símbolos da religião.
O livro começa com a descoberta da morte de Firmino, dito Dom Rufia, que imediatamente se percebe resultar de um crime, dado que foi baleado.
O caricato da história é que, ao longo da noite do velório, se vão apresentando várias viúvas: Domitília, de Almodôvar; Acélia, de Moura; Joaquina Fialho, casado, dita Joaquinita, de Alvito; Maria de Jesus, de Beja; (Flôr do Carmo, de Beja, que não vem enganada, mas cobrar os seus serviços); D. Cremilde, de Palmela, que se apresenta com o seu marido; Mariana, das redondezas de Viana do Alentejo, única à qual confessou a sua vida dupla; Antónia do Preto, de Satara, aldeia próxima de Fernão Baixo, que se vem a saber o enganou a ele; e ainda uma personagem que já de manhã, carregada de preto, surge e logo se perde na multidão. Acresce a possibilidade, que fica indiciada na posição de Armindo Costureira na fila das viúvas, assim como no final o seu aparecimento no cortejo fúnebre vestido de mulher, de existir uma relação homossexual.
A primeira viúva, que de facto era viúva, Domitília, foi a que lhe forneceu as asas para voar pelo Alentejo, tentando ser rico e conquistar as outras viúvas, pois disponibiliza-lhe o carro do defunto e dá-lhe meios, roupas, dinheiro, para poder viajar. As ausências justifica-as Dom Rufia com a mãe doente que já não existe. Numa outra jogada de mestre apodera-se das jóias de Domitília e passa a ser ourives em Moura. Depois vem a ser médico em Alvito, advogado em Beja, diplomata em Palmela… um homem que é analfabeto.
Todas estas histórias e ainda outras da juventude do finado são apresentadas no velório, contadas pelos próprios intervenientes ou pela tia de Dom Rufia, que o criara.
As histórias, muitas são autênticas anedotas, valem bem a leitura. A de quem foi o matador até se esquece. Mas no fim, quando nos surge a pergunta, a resposta aparece e não é o que esperávamos depois de vermos tantas mulheres enganadas.
No entanto, em relação à estratégia narrativa, salvo melhor opinião, não parece ser muito  lógica ao nível da validação verídica.
Vejamos, o narrador, numa espécie de prefácio, assume-se como um familiar («…um longínquo tio que me corre nas veias…», pág. 11) de Firmino Pote, i.e., Dom Rufia, que por via de seu avô, Attílio Pote, conhece a história, recolhida por este último durante a sua passagem por Fernão Baixo, em onze dias, durante a lua de mel. Testemunhos recolhidos através do tio de Firmino, Homero Dente d’Alho, que acompanhou o sobrinho em algumas das suas aventuras, e de vizinhos. Homero não sabia tudo, mesmo que Firmino lhe tivesse contado pormenorizadamente como tinha conquistado as suas viúvas. Ora, na narração assume-se frequentemente como omnisciente – que tudo sabe, mesmo os pensamentos das personagens –, e ocorrem mesmo diversas focalizações internas, – a história a ser contada pelos olhos de uma personagem –, que não encaixam com esta estratégia de narrador editor.
Ainda sobre a narração não é facilmente aceitável que no princípio o narrador afirme que «eu» cosi os bocados da história e pede desculpa por ter de o fazer «nas palavras que possa», e depois em vários momentos passar para um nós: «…a nossa fonte, diga-se com justiça, nunca foi moralista.», pág. 152: «…viemos [quem?] mais tarde a ter a informação de como…», pág. 187.
Importa, talvez, referir ainda a personagem de Juan de los Fenómenos, que aparece para reforçar a ubiquidade de Firmino. Na sua deambulação pelo Alentejo à cata de fenómenos, apercebe-se de que encontra o mesmo homem em vários lugares e com diferentes estatutos. No fim, antes de regressar à sua terra natal, o Chile, interessa-se por Dom Rufia e procura deslindar mais este fenómeno, mas não tem sucesso, pois o tio, a partir do qual ele pretende conseguir informação, apercebe-se da estratégia daquele e não fala. Levanta o problema se o caso de Pote não é mais do que um dos muitos fenómenos que Juan investiga, como unhas que crescem da noite para o dia, olhos que mudam de cor, etc.

CAMPANIÇO, Carlos. As viúvas de Dom Rufia. Casa das Letras, 2016.