No passado domingo foi apresentado o livro de poemas em
epígrafe.
A poeta, depois de adiar por várias décadas a publicação
desta coletânea, decidiu agora separar-se destes poemas, em constante aperfeiçoamento,
e dá-los ao público.
A poesia de Isabel Maia surge muito marcada pelo percurso
existencial, em que a solidão, a dor e a erosão que o tempo provoca são temas
predominantes. Os poemas remetem aparentemente para momentos relevantes da sua
vida, no entanto, como é sabido, uma coisa é a vida escrita e, naturalmente,
outra a vida vivida.
Com a autorização da autora, eis dois dos poemas, seguidos
de breves comentários:
A solidão é um local
desabrigado
A solidão
é um local desabrigado
que altera o voo das aves
e a cor das violetas
A solidão, considerada em abstrato, não altera nada. No
entanto, para a pessoa que está só tudo poderá ser alterado. Veja-se que o eu
poético, para exemplo desse estado alterado, escolheu o céu e a terra, o alto
e o baixo, o animal e o vegetal: dois dos seres mais belos que o nosso mundo
produz. Note-se ainda que o único abrigo que poderá existir é a terra, pois o
céu também é desabrigado, fatalmente as aves terão de pousar. Talvez na haste
de alguma flor, e essa união da ave com a flor dissolva a solidão.
Com os cotovelos da
alma
Com os cotovelos da alma
apoio-me na varanda do 6.º andar
Pedaços de vida lá fora
da mulher que apanha cenouras
para um avental
do homem sem idade que apanha lixo
para uma saca velha
dos doentes que passeiam as dores
nos jardins do hospital
saudades cá dentro
o vidro partido daquela janela
continua à espera que o vão lá trocar
janelas nuas tinta descascada
roupa pendurada
Morava ali uma mulher
que se lançou no ar à procura de paz
Vai chover
Papéis rodopiam folhas rodopiam
no chão pardacento
o homem da saca
a mulher das cenouras
os pés dos doentes
os papéis e as folhas
todos partiram
Só eu fiquei
contigo na alma
contigo na chuva
no chão pardacento
nas folhas que giram
na tarde que morre
Poema construído a partir de fragmentes significativos do
que o eu poético vê a partir de uma janela alta e daquilo que esses «pedaços de
vida» evocam.
A apresentação de todas as pessoas referidas como tendo
partido, as pinceladas que apresentam a vida da cidade como desumana, podendo
mesmo culminar em suicídio, ou ainda a feição outonal da natureza fazem o
sujeito poético pensar, quase de forma circular, nas saudades referidas no
início e na ideia de finitude, de morte.
Uma pergunta ainda: Quem é ou o quê é o «tu» interpelado
por «contigo»?
Sobre Isabel Maia transcreve-se da badana:
«Isabel Maia
na Escola, no Liceu, na Universidade de Coimbra, onde
completou a licenciatura em Filosofia, e deixou a meio a de Jornalismo,
nasceu em Coimbra, cidade que sempre levou no coração para
onde quer que fosse,
paisagens, todas, especialmente as literárias,
desde pequena que escreve, em folhas dispersas, ou em
cadernos que perde,
é, sobretudo, na poesia que se revê, como um modo de ser e
respirar,
daí, este livro, com décadas de atraso.»
MAIA, Isabel. Uma
existência outra. Palimage, Coimbra, 2016.
Obrigada.
ResponderEliminarDesvendo o "contigo": um amor perdido que permanece...na chuva, no chão, nas folhas, na alma...