Ferreira de Castro (Ossela - Oliveira de Azeméis, 1898; Porto, 1974)
Ferreira de Castro (1898-1974), no posfácio, em relação à
sua experiência de vida, afirma: «…a melhor [aquisição] foi compreender e amar
o meu semelhante. Compreendê-lo nas suas fraquezas e nas suas forças, nos seus
erros e nos seus acertos e amá-lo nas suas virtualidades, nas suas maravilhosas
realizações e nos heroísmos sem história que a vida quotidiana, a miséria, as
aspirações sempre adiadas, impõem a tantos deles com implacável frequência…»
Pois é isto que ele faz pelos habitantes do Barroso (região
formada pelos concelhos de Montalegre e Boticas), onde esteve várias vezes.
Neste romance retrata a heroicidade desse povo perante a miséria extrema e o
isolamento. Homens e mulheres que, nos anos trinta do século passado, ante uma
natureza madrasta, subsistem no limite, no meio das pedras e do frio, quase que
apenas com recurso à criação de algum gado, com o qual dormem paredes meias e à
magra produção de vegetais nos parcos lameiros.
Ainda segundo o autor, o referido isolamento produz
evolução diferente e singular dos povos. É pois essa singularidade e o heroísmo
do homem anónimo que este livro celebra. Nesta perspectiva podemos até afirmar
que este heroísmo remete já para uma espécie de personagem tipo, ainda que sem
envolvimento marcado com a emancipação social e a consciência política do operário,
rural ou fabril, antecipando as figuras protagonistas do neorrealimo. Um dos
temas presentes é o das relações de poder: o cacique e o povo subserviente, sem,
no entanto, surgir ainda de forma explícita a chama da revolta.
Espécie de resumo:
Leonardo e Ermelinda, casados há três anos e ainda jovens,
são os protagonistas deste romance. Ele, de estatura mediana, muito forte,
rosto crestado, lábios grossos, olhos pestanudos, projeta prosperar, abrindo
uma venda (misto de taberna e mercearia), para poder deixar o seu ofício de
peliqueiro que pouco rendimento lhe dá. Ela é a rapariga mais formosa lá do
lugar, gosta do marido e apoia-o, até que…
Santiago, um «americano», regressa à terra natal,
Padornelos – Montalegre. Viúvo e com dinheiro constrói casa abastada e torna-se
o homem mais importante do lugarejo, mesmo mais importante do que o padre. O
leitor poderá interrogar-se porque é que, com tanto dinheiro, se vai instalar
numa tão insignificante localidade. Naturalmente, só aqui poderia adquirir a
importância referida, pois mesmo em Montalegre havia vários caciques de longe superiores, mais ricos, quer em bens materiais, quer em conhecimento e erudição,
e há ainda a questão, apenas indiciada, de que regressou ao berço em conflito
com a família da mulher americana por se ter apropriado de mais do que seria
seu de direito.
Este americano dá
emprego a muita gente, principalmente na lavoura e na construção civil, através
da mãe, que de tia Rita passou a sr.ª Rita, contrata uma criada que passado um
tempo foi mandada para Lisboa porque andava «pesada e doentota», obviamente
para esconder a gravidez. É a vez de «Linda» ser contratada. Resiste aos
primeiros avanços do patrão e pensa não voltar àquela casa. Mas, convencida
pela sr.ª Rita e porque, de facto, não tinha acontecido nada, regressa e também
acaba por ser seduzida e engravida.
Por essa altura, a conselho do americano, Ermelinda afirma
querer ter um filho, e como já lá vão três anos e não engravidou, convence Leonardo
de que precisam de ajuda. Deslocam-se à Ponte da Misarela, onde passam a noite
sem falar até que ao amanhecer interpelem o primeiro homem que passa,
convidando-o para padrinho da criança – naturalmente uma reminiscência de um
rito pagão.
Quando ela fica impedida de trabalhar, uma nova criada é
admitida, Guida, filha da picheleira. Para evitar problemas, Santiago empresta
dinheiro a Leonardo para abrir a tão almejada venda, fixando assim Linda a esse
espaço onde para além de tratar do filho terá que atender a clientela, enquanto
Leonardo continua o negócio das peles.
Mas, antes de se vir embora de casa de Santiago, este
convence-a de que ainda gosta dela e combina um sinal para se encontrarem. Ora
o sinal não surge durante meses e Linda vem a saber, por frequentadores da
taberna, que o que logo suspeitara é verdade: Guida está grávida do patrão.
Quando finalmente o sinal surge, desgostosa com tudo o que acontecera, pondera
se deverá comparecer ou não. Acaba por ir, mas o encontro corre mal, pois Ermelinda
mata o americano com uma sacholada.
Chegada a casa confessa a Leonardo que matou Santiago,
mentindo-lhe ainda ao dizer-lhe que ele tentou avanços que ela não permitiu.
Este, num assomo de orgulho e honra viril, considerando que se ela não o
tivesse feito, fá-lo-ia ele, decide assumir a culpa e fugir para Espanha, onde
encontra abrigo em casa de Iglésias, galego para quem ele comprava as peles.
A filha de Iglésias está embeiçada por Leonardo, do que
este vem a suspeitar mais tarde, mas em que não quer acreditar.
Leonardo visita a mulher e o filho e ninguém compreende
porque é que não dá cabo dela, pois todos já sabem que o menino é do americano,
mas não sabem que ele não suspeita sequer disso. Naturalmente era inevitável
que o viesse a saber. Nesse momento dirige-se a casa para matar Ermelinda. Mas
a Guarda Republicana que o procura pela morte de Santiago apanha-o perto da
fronteira e leva-o para Montalegre. Quando Ermelinda sabe, decide finalmente retratar-se
e assume a culpa. É presa e vai cumprir a sua pena.
Leonardo volta para Espanha, casa com Rosalía. Pela morte
do genro torna-se dono do negócio deste e pode dizer-se que é um homem
próspero.
O romance acaba com a demonstração de que o sonho e a
ambição de Leonardo não morreram. Artur Lopes, velho conhecido e amigo, que
emigrara e a quem a vida não correra muito bem (faz aqui contraponto com
Santiago), procura-o para tentar reativar o sonho de descobrir um hipotético
tesouro enterrado nas pedras no Larouco. Leonardo começa por recusar, usando os
mesmos argumentos que o sogro usara quando lhe pedira sociedade para tal
empresa, mas acaba por ceder, pedindo que não diga nada a sua mulher, Rosalía.
O romance dá-nos ainda, entre outras, imagens de um Portugal
passado com gestão comunitária do gado, a «vezeira», em que cada um pastoreia à vez o gado de todos, as
chegas de toiros, organizadas para gáudio do povo e que frequentemente
resultavam em pancadaria.
Ainda uma palavra sobre as cores predominantes. O branco, a
luz, na aldeia de Padornelos apenas existe na casa de Santiago, em oposição às
de todos os outros que são negras por fora e por dentro, praticamente sem
janelas. Assim é também na natureza circundante. Ora o escuro das pedras, ora a
brancura imaculada da neve. Em alguns momento quer o negro quer o branco são
símbolos de morte.
CASTRO, Ferreira de. TERRA FRIA. Guimarães Ed. s/d, 10.ª edição.
Além de muito bem escrita, sua leitura conta com a sensibilidade de quem percebe sutilezas como cores e seus símbolos. Gostei muito.
ResponderEliminar"Terra Fria" é um excelente romance de costumes. Gostei muito das descrições de Padornelos e da singularidade do seu clima. De lamentar apenas não ter aprofundado ainda mais outros aspectos da cultura barrosã.
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