Este é um livro composto por fragmentos de quatro cadernos
de notas: Caderno de S. Paulo, Livro dos Sonhos, Caderno de Sintra e um outro
que, não sendo identificado, não é nenhum dos anteriores.
Naturalmente, isto resulta numa escrita fragmentária a que
apenas é dada alguma coesão pela assunção da autora de que a escrita é isso
mesmo: um conjunto de fragmentos que em determinado momento se juntam e fazem
sentido “a escrita fragmentária que de repente encaixa num todo.” (p.
150).
De facto, um dos pontos de interesse deste livro é ver como
a autora pensa a sua escrita e o modo como ela surge. A escrita é o fulcro de
tudo. É uma inevitabilidade para quem sente essa necessidade, uma pulsão
incontrolável: “Escrever é como voltar ao local do crime.”(p. 62).
Outra questão abordada é a memória. Memória que engloba
pequenos relatos de um mundo em transição. Rituais que apenas subsistem, porque
alguém se lembra deles: o processo de produzir o linho; o luto. Mas também uma
memória simultaneamente intelectualizada
e afetiva: “Memória é recuperar o que resta dos outros de que também nós somos
feitos.”(p. 115).
Os textos do Livro dos Sonhos são muito interessantes, pois
criam pequenas histórias, que refletem as incoerências próprias dos sonhos, mas
em que várias imagens possuem um sentido crítico muito vincado: uma caixa negra
em forma de rochedo para esconder um navio naufragado, etc.
Do Caderno de São Paulo (p. 36-40) sobressai o texto “Animais
e plantas” que lembra vários textos de ficção científica em que as plantas e
animais se revoltam contra os humanos.
Há por todo o lado crítica ao modo como nos comportamos
individualmente e em sociedade. A este propósito o texto “O supermercado como uma missa
negra” (p. 62-63) é um bom exemplo: “Lutai por chegar primeiro e
tirai das prateleiras tudo o que vos for possível açambarcar.”; “…a
vossa prioridade, o vosso único interesse e objectivo é encher a sagrada
Barriga…”
GERSÃO, Teolinda. AS ÁGUAS LIVRES: Cadernos II. Sextante Editora, 2013.
GERSÃO, Teolinda. AS ÁGUAS LIVRES: Cadernos II. Sextante Editora, 2013.
Um aspecto interessante, mencionado num clube de leitura a que assisti, é este modo de apresentar factos, reflexões, sentimentos… é uma nova e inovadora maneira de apresentar uma espécie de diário, em que a cronologia não é importante, mas em que existe apenas um tempo interior que dá coesão ao discurso livre e fragmentário.
ResponderEliminarHá ainda uma intertextualidade muito marcada entre este texto e outros textos da autora, bem como com outras obras, nomeadamente de filosofia.