Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


quinta-feira, 4 de maio de 2017

A ÚLTIMA RODADA, Rui Miguel Fragas



Post Mortem


Há, no presente conjunto de contos, uma realidade dual.
Todas as personagens são, ou estão acompanhadas por, uma outra. Poder-se-á pensar que se discute aqui o eterno conflito ou a coincidência entre os opostos bem / mal, vida / morte, ou mesmo a dualidade de todos os seres humanos. Todos esses temas são certamente aflorados, mas sem o propósito de criar uma situação problemática que vai ser resolvida no fim da narrativa, aliás a obra suscita muitas questões e nenhumas respostas. Alguns exemplos: Por que razão há um funil que atravessa todas as histórias?; Para onde dá o precipício?; Por que é necessário um faroleiro?; Por que são tantas e tão diferentes as vozes que contam as historias?; Até que ponto as dietas são importantes, pois as várias personagem têm bebidas preferidas e apreciam diferentes petiscos?; Se considerarmos a aldeia metonímia do mundo: Que está fora dela? Que ou quem simbolizam as várias personagens principais?…

Encontra-se, nestes textos, uma espécie de poética da destruição, ou melhor da entropia. A constatação do aniquilamento progressivo dos aldeões vai-se intuindo e adensando ao longo leitura através da isotopia da morte, mas nada nos prepara para o ressurgimento destes num outro plano da realidade.
De facto, desde o início vão-nos aparecendo vocábulos directa ou indirectamente relacionados com a morte[1], que pela sua acumulação vão preparando o leitor para o desenlace: aniquilação total  da aldeia.
Aparentemente o fogo, símbolo de destruição, mas também de limpeza, de esterilização, é aqui o fogo do inferno. Mas, paradoxalmente é este fogo que extirpa o “mal”. Poderá um novo “bem” prosperar, até que volte a ser “mal” e de novo destruído?.
Se o fantasma, o doppelganger[2], numa outra realidade, têm direito a uma última rodada, implica que entre o etéreo e a matéria há uma zona de sobreposição que permite a um pirilampo ser farol e faroleiro, a uma bruxa ser Amílcar e a uma ovelha ser mais ajuizada que o menino que a pastoreia.

- Taberneiro, bota aí mais uma prò caminho!


Para avivar a vontade de ler, com a devida vénia ao autor e a sua autorização, aqui vão dois extractos de diferentes contos:

Conversa entre um cão, Nicolau, e uma ovelha, Angelina:

«Ainda há coisa de dois anos vivia eu numa aldeia muito longe daqui, começou o cão. Nessa altura não tinha muitas razões de queixa. Era dono de uma casota onde a chuva não entrava e a geada ficava à porta, nunca me faltava um osso, por mais descarnado que fosse, passava os dias a dormitar sem ter com que me ralar e, ainda por cima, todas as cadelas cainças vinham cair aos meus pés.
De certeza que era por seres bem-parecido, atalhou Angelina de sobrancelha arqueada.
Vê-se logo que és uma ovelha de bom gosto. Era exatamente o que elas me diziam. A minha dona era a mesma que tenho hoje, a mulher que tu conheceste e que está a dar de comer ao rapazito que veio contigo. Chama-se Natália. Nessa altura era casada e mãe de três filhos. Se não fosse o marido, poder-se-ia dizer que vivíamos no paraíso. O homem no entanto era mau como as cobras. Passava o dia a trabalhar numa pedreira e mal chegava a casa punha-se a desancar na triste. […] Nessas alturas nem eu escapava. Haverá coisa mais absurda do que um homem espancar um cão inocente?
Angelina absteve-se de fazer comentários: tinha assistido a tantas injustiças que já poucas coisas a surpreendiam. Nicolau arrebitou as orelhas, farejou a escuridão, lançou um ladrido desafinado e desapareceu mais depressa que um raio. A ovelha poisou o focinho sobre a palha e fechou os olhos cansados. Vou ter uma noite desgraçada, suspirou.» (p. 104-105)

Um pirilampo que é farol e faroleiro:

«Em rigor o farol não existia: era apenas o esboço de uma ideia vaga e informe, qualquer coisa que tinha sido parida antes de ser plenamente concebida. Quanto ao resto era um farol como todos os outros. Projetava raios intermitentes de luz a milhas de distância graças a um aparelho óptico de lentes de vidro e, porque no centro do varandim sobre uma máquina de relojoaria tinha sido instalado um banquinho, tanto alumiava na direção do mar como, quando rodava, alumiava o planalto e pairava sobre as árvores da floresta.
O faroleiro era um pirilampo chamado Vergílio. Era um velho vaga-lume de rosto esquálido, de pele dura trabalhada pelo vento, sulcada de rugas, de olhos grandes e antenas murchas. Só o abdómen sobressaía sobre as pernas fininhas, um ventre saliente e untuoso como uma bola de sebo envolta em veias tortuosas. Nem a ginástica que as escadas o obrigavam mais do que uma vez ao dia, duzentos degraus para cima e outros duzentos para baixo, lhe tinham alisado o ventre ou engrossado os músculos das pernas. Tinha envelhecido na solidão do planalto, anos e anos a fio, suspenso sobre a boca do abismo.
Vergílio tinha uma existência um pouco esquizofrénica. Como o farol era o que era, pouco mais do que uma ideia, o pirilampo fazia de farol ao mesmo tempo que trabalhava como faroleiro. Uma coisa é ser faroleiro: limpar e tratar do edifício, cumprir os horários de vigilância, estar atento aos caprichos do tempo, adivinhar as tempestades e acionar os mecanismos de alerta. Outra coisa bem diferente é sentar-se no tamborete giratório de ventre para o ar e pôr-se a acender e a apagar, a apagar e a acender, a piscar e a voltar a piscar, noite após noite, só com um gorro na cabeça ou, quando o vento o permitia, um chapéu-de-chuva empenado a proteger as antenas. Ser farol e ser faroleiro é como ter duas profissões a tempo inteiro, trabalhar quarenta e oito horas por dia e, em certas alturas, fazer ainda horas extraordinárias. O esforço do pirilampo não só não era remunerado, como não era reconhecido por nenhuma autoridade competente.» (p. 129-130)
FRAGAS, Rui Miguel. A última rodada. Poética Edições, 2017

[1] V.g.: Morte – 30; cemitério – 13; coveiro / cova – 80; precipício / abismo – 20; sangue – 18; negro, negrume, preto –  c. 50… A ocorrência destas palavras representa mais de 1% de todos os vocábulos usados na economia da narrativa.
[2] Refere-se a um ser que, de acordo com o folclore germânico, encarna uma cópia de uma pessoa a quem acompanha. Conceito um pouco diferente do ibbur, que é protagonista dos Anagramas de Varsóvia de Richard Zimmler («Um ibbur? – Um ser como você, que regressou da terra que fica atrás da berma do mundo.» - Ed. Oceanos, 2009; p. 16), sendo este último um espírito de alguém morto que procura resolver problemas que ficaram por resolver em vida.



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