Post Mortem
Há, no presente conjunto de contos, uma realidade dual.
Todas as personagens são, ou estão acompanhadas por, uma
outra. Poder-se-á pensar que se discute aqui o eterno conflito ou a
coincidência entre os opostos bem / mal, vida / morte, ou mesmo a dualidade de todos
os seres humanos. Todos esses temas são certamente aflorados, mas sem o
propósito de criar uma situação problemática que vai ser resolvida no fim da
narrativa, aliás a obra suscita muitas questões e nenhumas respostas. Alguns exemplos:
Por que razão há um funil que atravessa todas as histórias?; Para onde dá o
precipício?; Por que é necessário um faroleiro?; Por que são tantas e tão
diferentes as vozes que contam as historias?; Até que ponto as dietas são
importantes, pois as várias personagem têm bebidas preferidas e apreciam
diferentes petiscos?; Se considerarmos a aldeia metonímia do mundo: Que está
fora dela? Que ou quem simbolizam as várias personagens principais?…
Encontra-se, nestes textos, uma espécie de poética da destruição,
ou melhor da entropia. A constatação do aniquilamento progressivo dos aldeões vai-se
intuindo e adensando ao longo leitura através da isotopia da morte, mas nada
nos prepara para o ressurgimento destes num outro plano da realidade.
De facto, desde o início vão-nos aparecendo vocábulos
directa ou indirectamente relacionados com a morte[1], que
pela sua acumulação vão preparando o leitor para o desenlace: aniquilação
total da aldeia.
Aparentemente o fogo, símbolo de destruição, mas também de
limpeza, de esterilização, é aqui o fogo do inferno. Mas, paradoxalmente é este
fogo que extirpa o “mal”. Poderá um novo “bem” prosperar, até que volte a ser
“mal” e de novo destruído?.
Se o fantasma, o doppelganger[2],
numa outra realidade, têm direito a uma última rodada, implica que entre o
etéreo e a matéria há uma zona de sobreposição que permite a um pirilampo ser
farol e faroleiro, a uma bruxa ser Amílcar e a uma ovelha ser mais ajuizada que
o menino que a pastoreia.
- Taberneiro, bota aí mais uma prò caminho!
Para avivar a vontade de ler, com a devida vénia ao autor e
a sua autorização, aqui vão dois extractos de diferentes contos:
Conversa entre um cão, Nicolau, e uma ovelha, Angelina:
«Ainda há coisa de
dois anos vivia eu numa aldeia muito longe daqui, começou o cão. Nessa altura
não tinha muitas razões de queixa. Era dono de uma casota onde a chuva não
entrava e a geada ficava à porta, nunca me faltava um osso, por mais descarnado
que fosse, passava os dias a dormitar sem ter com que me ralar e, ainda por
cima, todas as cadelas cainças vinham cair aos meus pés.
De certeza que era por
seres bem-parecido, atalhou Angelina de sobrancelha arqueada.
Vê-se logo que és uma
ovelha de bom gosto. Era exatamente o que elas me diziam. A minha dona era a
mesma que tenho hoje, a mulher que tu conheceste e que está a dar de comer ao
rapazito que veio contigo. Chama-se Natália. Nessa altura era casada e mãe de
três filhos. Se não fosse o marido, poder-se-ia dizer que vivíamos no paraíso.
O homem no entanto era mau como as cobras. Passava o dia a trabalhar numa
pedreira e mal chegava a casa punha-se a desancar na triste. […] Nessas alturas
nem eu escapava. Haverá coisa mais absurda do que um homem espancar um cão
inocente?
Angelina absteve-se de
fazer comentários: tinha assistido a tantas injustiças que já poucas coisas a
surpreendiam. Nicolau arrebitou as orelhas, farejou a escuridão, lançou um
ladrido desafinado e desapareceu mais depressa que um raio. A ovelha poisou o
focinho sobre a palha e fechou os olhos cansados. Vou ter uma noite desgraçada,
suspirou.» (p. 104-105)
Um pirilampo que é farol e faroleiro:
«Em rigor o farol não
existia: era apenas o esboço de uma ideia vaga e informe, qualquer coisa que
tinha sido parida antes de ser plenamente concebida. Quanto ao resto era um
farol como todos os outros. Projetava raios intermitentes de luz a milhas de
distância graças a um aparelho óptico de lentes de vidro e, porque no centro do
varandim sobre uma máquina de relojoaria tinha sido instalado um banquinho,
tanto alumiava na direção do mar como, quando rodava, alumiava o planalto e
pairava sobre as árvores da floresta.
O faroleiro era um
pirilampo chamado Vergílio. Era um velho vaga-lume de rosto esquálido, de pele
dura trabalhada pelo vento, sulcada de rugas, de olhos grandes e antenas
murchas. Só o abdómen sobressaía sobre as pernas fininhas, um ventre saliente e
untuoso como uma bola de sebo envolta em veias tortuosas. Nem a ginástica que
as escadas o obrigavam mais do que uma vez ao dia, duzentos degraus para cima e
outros duzentos para baixo, lhe tinham alisado o ventre ou engrossado os
músculos das pernas. Tinha envelhecido na solidão do planalto, anos e anos a
fio, suspenso sobre a boca do abismo.
Vergílio tinha uma
existência um pouco esquizofrénica. Como o farol era o que era, pouco mais do
que uma ideia, o pirilampo fazia de farol ao mesmo tempo que trabalhava como
faroleiro. Uma coisa é ser faroleiro: limpar e tratar do edifício, cumprir os
horários de vigilância, estar atento aos caprichos do tempo, adivinhar as
tempestades e acionar os mecanismos de alerta. Outra coisa bem diferente é
sentar-se no tamborete giratório de ventre para o ar e pôr-se a acender e a
apagar, a apagar e a acender, a piscar e a voltar a piscar, noite após noite,
só com um gorro na cabeça ou, quando o vento o permitia, um chapéu-de-chuva
empenado a proteger as antenas. Ser farol e ser faroleiro é como ter duas
profissões a tempo inteiro, trabalhar quarenta e oito horas por dia e, em
certas alturas, fazer ainda horas extraordinárias. O esforço do pirilampo não
só não era remunerado, como não era reconhecido por nenhuma autoridade
competente.» (p. 129-130)
FRAGAS, Rui Miguel. A última rodada. Poética Edições, 2017
[1] V.g.:
Morte – 30; cemitério – 13; coveiro / cova – 80; precipício / abismo – 20;
sangue – 18; negro, negrume, preto – c.
50… A ocorrência destas palavras representa mais de 1% de todos os vocábulos
usados na economia da narrativa.
[2]
Refere-se a um ser que, de acordo com o folclore germânico, encarna uma cópia de
uma pessoa a quem acompanha. Conceito um pouco diferente do ibbur, que é protagonista dos Anagramas
de Varsóvia de Richard Zimmler («Um ibbur? – Um ser como você, que
regressou da terra que fica atrás da berma do mundo.» - Ed. Oceanos, 2009; p.
16), sendo este último um espírito de alguém morto que procura resolver
problemas que ficaram por resolver em vida.
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