Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


sábado, 26 de dezembro de 2009

O ÚLTIMO SUSPIRO DO MOURO, Salman Rushdie


Este não é propriamente um texto de análise, é mais um género de notas soltas.

Depois de Os Versículos Satânicos, Rushdie retoma a problemática religiosa, através da história de uma família indiana com aspirações a ascendência ilustre: Vasco da Gama através de Aurora e do lado de Abraham, através de Morais Zogoiby, seu filho, o sultão Boabdil. Último de Granada; facto que dá nome ao livro, pois Morais era conhecido por Mouro. Ao longo da obra vai haver uma sobreposição entre o mouro Morais e o mouro Boabdil, aliás como em vários outros domínios, nomeadamente em relação a quadros que são pintados por cima de outros quadros: palimpsestos.
A história é narrada por Morais Zogoiby, prisioneiro de um enamorado, amante, de sua mãe, que conta a saga familiar à maneira de Xerazade para prolongar a sua vida.
O livro é um repositório invulgar de cultura- Dá-nos uma imagem caleidoscópica da Índia do séc. XX, por onde perpassa a pintura, o cinema, a literatura, a crítica severa das relações humanas: depravação, degradação… ocasionalmente de moralidade duvidosa.
Transcrevo um excerto que surpreendentemente me parece resumir a obra e o registo em que é contada a história: “…tom mítico-romântico em que se acotovelam a história, a família, a política e a fantasia, como uma multidão numa estação de comboios…”.
Por vezes as palavras do livro são admiráveis. Morais, o Mouro, conta a sua própria história interpelando esporadicamente o leitor, mas lá aparecem reflexões que serão forçosamente de uma entidade superior a um narrador autodiegético: “É o velho problema dos biógrafos: mesmo quando as pessoas estão a contar a história da sua vida, estão invariavelmente a embelezar os factos, a reescrever a história ou pura e simplesmente a inventar.” (p.169). Lembrando ao leitor que o que lê é ficção e talvez, como é sabido, que frequentemente a realidade supera a ficção.
A obra versa também sobre o amor. A esse respeito retive uma frase lapidar: “Quando um engano de coração se revela como sendo uma loucura, achamo-nos parvos e perguntamos à família e aos amigos porque é que não intervieram, defendendo-nos de nós próprios. Mas nós próprios somos um inimigo de quem ninguém nos pode defender” (p.196).
A sociedade actual impõe, a muitos de nós, estilos de vida a que dificilmente podemos fugir. Alguns superam essa tirania dedicando-se a actividades desviantes, a promover conflitos, a lutar contra moinhos de vento… outros despersonalizam-se totalmente, sendo exactamente o que os seus superiores, patrões, famílias querem que sejam. Aprecie-se esta pérola: “Estão todos mortos, tanto os velhos como os novos, mas como ainda recebem reformas e mesadas recusam-se a deixar-se enterrar. Andam por aí, rua abaixo rua acima, comem, bebem e falam das vidas horríveis que levam…” “…tinham-se tornado, por vontade própria, em autómatos humanos. Podiam simular a vida humana, mas já não eram capazes de vivê-la” (p.470-471 e 481).
Para acabar, uma referência a um dos muitos aspectos jocosos da obra, pejada de ironia: “…torturas – a privação do sono, disseção sem anestesia, cócegas prolongadas nas axilas, malaguetas metidas no ânus, surperexposição a intermináveis espectáculos de ópera chinesa.” (sublinhado meu).
A leitura das cerca de 500 páginas leva o seu tempo, mas vale a pena!

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