Nunca tinha ouvido falar deste autor, mas, reconheço, é
interessante. Encontrei este pequeno livro, publicado um mês após o 25 de Abril, com mini-crónicas. A linguagem é algo surrealista. Retrata em muitos dos textos a vivência de gente do campo, essencialmente do Alentejo, deslocada para a cidade de Lisboa. Nas suas crónicas enfatiza o ridículo de várias situações com um humor muito interessante.
interessante. Encontrei este pequeno livro, publicado um mês após o 25 de Abril, com mini-crónicas. A linguagem é algo surrealista. Retrata em muitos dos textos a vivência de gente do campo, essencialmente do Alentejo, deslocada para a cidade de Lisboa. Nas suas crónicas enfatiza o ridículo de várias situações com um humor muito interessante.
Com a devida vénia ao autor, e apenas com o fim de promover
a leitura, transcrevo um dos textos que muito me tocou:
love story a preto e branco
«ia um tempo danado. o odre do céu despejava chuva há mais de
duas semanas e os homens bis cavam os dias na venda da chancuda, à saída da
aldeia, de quem vai para beja.
nem o nome valia à terra, já que santa vitória era um ensopado
de fome. braços caídos, enxadas enxutas de chão, forno frio, lareira sem
tanganhos, aquele era um inverno de morte. papas de milho, migas e polme tudo
ia fugindo, casa a casa, até ao fundo da aldeia.
o chico ferrador foi encontrado morto pelo frio, na enxerga de
vimes. tinha setenta anos e ferrara mais parelhas de mulas que cabelos tinha na
cabeça. sempre na forja, sempre a lidar com o fogo, morreu ali, enrolado no
frio daquele janeiro de má sina.
foi então que a joana calapez, com o tempo incompleto, se
lembrou de parir: só ossos e aquela barriga do tamanho duma bolota ninguém
jogava um valete pela cria. – e sabem o que veio? dois: dois gaiatos com dois
quilos cada um, redondos, pequeninos, uns repolhos de carne. e lindos! ou lindos
talvez não mas engraçados, porreiros.
joana calapez ficou nem viva nem morta, estiraçada na cama. a
arca vazia. o homem a olhar a chuva, fumando cigarros feitos das barbas do milho.
ele estava assim à porta, a fumar, quando viu os ciganos chegarem e atarem os
burros ao sobreiro grande. depois começaram a armar as tendas mais rotas que
remendadas: eram uns doze ou treze, mas as mais eram as mulheres. sujos,
encharcados, falavam aquela espanholada que só eles entendem.
dai a nada veio a cigana alta com um gaiato de dias pendurado
ao peito. a mamar. - pelas alminhas de quem tem no céu e as criaturas que mais
quer não me dava uma colherinha de açúcar para ver se calo três criaturinhas de
deus que ali tenho para criar?
- o homem foi lá ao fundo da casa e rebuscou na arca: o
cartucho estava mirrado mas ainda se raspavam bem duas colheres. a mulher, do
escuro do quarto perguntou: está ai alguém? e os recém-nascidos acordaram a
berrar do sono da fome. - valha-me santa aparecida mais nossa senhora de
guadalupe que estes anjinhos não têm mama, benzeu-se a cigana. e puxou do outro
peito, peito longo, largo, cheio, adonde o leite corria como seiva dum
pinheiro. mamada a um, mamada ao outro. depois ao filho. de novo a um, de novo
ao outro. e ao filho. e voltou à noite. e de manhã. muitas noites. muitos dias.
«meus ricos anjinhos! benzia-se».
numa madrugada a árvore não tinha burros. nem tendas. nem
ciganos.
- numa alcofa, à porta da casa, corados e reboludos brincavam
os filhos de joana calapez.»
OLÍMPIO, Eduardo. Às Cavalitas do Tempo. Prelo, 1974.
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