Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


quinta-feira, 27 de março de 2014

VIAGEM À RODA DO MEU QUARTO, Xavier de Maistre



As Viagens na minha terra de Almeida Garrett começam geralmente com a seguinte epígrafe:

“Qu’il est glorieux d’ouvrir une nouvelle carrière et de paraître tout-à-coup dans le monde savant, un livre de découvertes à la main, comme une comète dans l’espace!

Este é o primeiro parágrafo do opúsculo Viagem à roda do meu quarto de Xavier de Maistre (1763-1852), em português:

«Como é glorioso abrir uma carreira nova, e aparecer de repente no mundo sábio, com um livro de descobertas na mão, à semelhança de um cometa inesperado que de repente cintila no espaço!» (p.11)

De acordo com a “Notícia Biographica” deste pequeno livro, publicado pela primeira vez em Turim em 1794 e depois em Paris em 1825, Xavier de Maistre, de origem francesa e vivendo com a sua família no ducado de Sabóia[1], era já oficial do exército quando esta foi reunida a França em 1792. X. de Maistre não quis adquirir a nacionalidade francesa, combateu em Itália e depois na Rússia onde chegou ao posto de general. Apesar de ter renegado a nacionalidade francesa, foi em francês que escreveu a sua obra, que, na altura, teve grande divulgação e aceitação em França.
De acordo com aquilo que o texto da obra afirma, esta surgiu de uma espécie de detenção domiciliária por 42 dias em resultado de um duelo, tantos dias quantos os capítulos do livro.

O livro, escrito numa linguagem simples e por vezes ingénua, apresenta-nos, principalmente o conflito entre a racionalidade, representada pela alma, e a bestialidade, referida ora como a besta, ora como a outra.
À medida que vai descrevendo o seu quarto, os objetos que o integram e até o seu criado e a sua cadelinha, vai discorrendo com fina ironia sobre os homens e a sociedade do seu tempo, chamando com frequência em seu auxílio exemplos de autoridade do passado.
Algumas das estratégias que encontramos em Garrett foram já aqui utilizadas, v.g., a propósito de uma imagem parte para uma digressão filosófica; a interpelação frequente ao(s) leitor(es); críticas às atitudes e comportamentos de pessoas com responsabilidades sociais em confronto com a genuinidade e autenticidade do povo, nomeadamente na figura do seu criado; a circularidade da narrativa.
Naturalmente o obra de Garrett tem outro fôlego, mas esta serviu-lhe sem dúvida de inspiração. As propostas iniciais de ambos não diferem muito na substância. Enquanto X. de Maistre convida o leitor a que o acompanhe por onde a sua imaginação o levar, Garret propõe: «Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto pensar e sentir se há-de fazer crónica.» (1.º Cap.)
Penso que Garrett terá lido esta obra no francês original, pois, consultada a Biblioteca Nacional, a primeira edição que aí está registada é de 1888, embora o facto de referir que é a versão de Fernandes da Costa, implicaria a existência de pelo menos outra.

Viagem á roda do meu quarto seguida da Expedição nocturna á roda do meu quarto / por Xavier de Maistre ; versão de Fernandes da Costa com uma noticia biographica do auctor. Lisboa: Casa Ed. David Corazzi, 1888.


[1] Sabóia veio a ser definitivamente anexada em 1860.

terça-feira, 18 de março de 2014

A ILHA CONTADA: Antologia de contos cubanos. Caminho, 1996.



SACHA, Francisco López. A CASA DO SOL NASCENTE

Justificação da antologia. Resenha sobre o conto cubano e marcos importantes na evolução deste género. Estes contos ilustraram a produção de c. 1980 a 1994.
Durante este período são relevantes três fases distintas.

«Qualquer um dos relatos deste livro pode constituir um bom exemplo do estado atual do conto cubano. A antologia avança por ordem cronológica, de acordo com as datas em que surgiram os contos ou os autores. Paz, Díaz, Heras León e Maria Elena Llana representam o início da década, até 1984. Neles predomina o olhar da criança e do adolescente, a exposição de um conflito íntimo e, por vezes, a rutura da lógica da realidade. São relatos precisos, fechados em si próprios, com ligeiras ondulações internas que conduzem a um tema que ultrapassa os limites da história. A partir de Montero, entramos já no fim da década. Os autores que se seguem, com a única exceção de Aida Bahr, situam-se entre 1986 e 1990, e os contos de Prieto, García, Viera, Arango, Yáñez. Padura e Vidal são os mais exatos na abertura ao quotidiano ou, em todo o caso, na revelação de uma realidade intacta, matizada pelo absurdo, a violência ou o insólito. Abilio Estévez é um bom dramaturgo […]. Com Miguel Collazo passamos a fronteira dos anos 90 e os contos de Bobes, Garrido, Mejias e Angel Santiesteban integram-se nas vias de rutura que correspondem ao momento atual.»

PAZ, Senal. À SOMBRA DO SALGUEIRO.


A vida vista pelos olhos de uma criança.
Atento e observador gosta da sua família, mas não lhe escapam as diferenças de tratamento que avós e tias dão à mãe e ao pai que ainda não conhece.
É grande a sua expectativa quando lhe dizem que finalmente o vai conhecer. Maior é o seu desapontamento e desgosto, quando este o ignora, descartando a apresentação, que o pequeno tanto esperou, com um comentário sobre a parecença com a mãe.

DÍAZ, Jésus. FEIRA POPULAR.


Numa barraca de feira, um rapaz observa uma rapariga sentada numa prancha suspensa sobre a água fria, em que terá que mergulhar, se alguém acertar, atirando uma bola, na chapa que aciona o mecanismo que provoca a queda. Este gasta o seu dinheiro e não consegue derrubá-la. É demasiado jovem, apesar de uma vez ter acertado não teve a força necessária para que o mecanismo funcionasse. O que ele pretende é captar-lhe a atenção. Não o consegue.
Vem um pitcher de basebol americano bêbado que derruba a rapariga pelo menos vinte vezes. Segundo os amigos delapidava o seu capital, não o dinheiro, sim o braço. O rapaz, apesar de ser fã do americano, indigna-se por ele ser tão cruel com a rapariga, que ele julga amar. Mostra-se ainda indignado porque a rapariga resistiu a tudo, sem uma queixa sem uma revolta, com grande determinação, pois preferiria que ela fosse humilhada.

MEJIDES, Miguel. A MINHA PRIMA AMANDA.


As recordações de infância e uma certa necessidade de as esconjurar. Vidas falhadas por motivos insignificantes. Influência da cultura americana.

LEÓN,Eduardo Heras. FIM DE DIA.


Fim de dia de um casal de operários cuja relação enferma de um qualquer problema que não enxergo. Aparentemente dão-se bem, no entanto ela não está a trabalhar, pois ele diz-lhe que na fábrica sentem a sua falta. Ela parece desejar um filho, mas repele-o, ainda que meigamente, assim que ele pretende acariciá-la, o que ele parece aceitar sem grande dificuldade.

LLANA, Maria Elena. EM FAMÍLIA.


Um espelho que reflete os mortos da família leva a narradora a questionar qual dos dois lados é real. Os dois mundos não são completamente estanques. Não é explicado, mas o mundo dos mortos governa o dos vivos, pois a personagem que contatou com o lado de lá teve morte imediata, mas, naturalmente, se tal não acontecesse, morreria também, implicitamente, mais tarde.

MONTERO, Reinaldo. “HAPINESS IS A WARM GUN”, CARY SAYS[1].


Uma história em forma de longa pergunta. Que farias se?
Aparentemente um grupo de jovens engata um homem uns quinze anos mais velho para o defraudar, o burlar a qualquer momento. Estamos sempre à espera de que tal aconteça: no pagamento das bebidas; no pagamento do táxi; na consumação de uma relação amorosa, etc. Nada. Finalmente só tem que entregar uns artigos a alguém que os espera. São estes artigos roubados? Há aqui qualquer espécie de tráfico? …?

PRIETO, Abel. DE ESTUPIÑÁN E DA AMIBA.


A luta de um hipocondríaco, Estupiãnán, contra a amiba que lhe mina as entranhas. Esta leva-o ao isolamento, a descurar a vida profissional, social e familiar.
Vai de férias. Todos pensam que se ensimesmaria ainda mais. Um conhecido traz a notícia de que o encontrara a beber na companhia de uma mulher com a qual lhe afirmara que iria reconstituir a sua vida. O fim apresentado não resolve nada. A sugestão parece ser apenas de que até aquele que nos parece ter um comportamento absolutamente previsível é capaz de nos surpreender.

GARCÍA, Luis Manuel. O VENDEDOR DE BORBOLETAS.


O soldado-máquina, que cumpre a sua missão sem que algo o possa demover, contra o louco que sobrevive a um ataque acidental ao hospital que o alojava. A borboleta que pretende vender ao soldado não é moeda de troca aceitável.
O soldado julgando-se ameaçado mata o louco. A morte deste desencadeia todo o género de catástrofes. Supõe-se que no mundo do soldado americano.

BAHR, Aida. IMPERFEIÇÕES.


A velhice demencial de uma avó que já perdeu o seu companheiro e que o procura do outro lado do espelho, de um qualquer espelho, que lhe devolve progressivamente uma imagem mais jovem de si própria e depois a faz imaginar o amplexo do seu amado, que não é naturalmente mais do que o ato de ser agarrada pelos seus familiares que a forçam a deitar-se.

VIERA, Félix Luis. ABELARDO E O RÁDIO.


Temos novamente, um narrador jovem. É um jogador de berlinde, vigarizado por um dos outros rapazes, Abelardo. O primeiro, perante uma vantagem evidente, da qual poderia tirar grandes dividendos, perante a possibilidade de ele próprio se tornar um canalha, hesita.

ARANGO, Arturo. O ESTÁDIO.


Um jogador medíocre de basebol, mas com grandes ambições, de súbito constata que não tem as qualidades necessárias para ser um bom jogador.
Convidado a explorar o quiosque de tabaco do estádio, vai de passo em passo descobrindo, através da audição, dos aplausos, das vaias, das exclamações o que se passa no campo. Mais tarde vai ainda mais longe. Apercebe-se de que o estádio é um pequeno universo que tem leis próprias e que qualquer acontecimento de somenos importância o afeta. Veio também a compreender os meandros do submundo das apostas e a conseguir identificar os seus protagonistas.
Até que um neto seu entra no campeonato e ele começa a tentar usar conhecimentos adquiridos ao longo de muitos anos para influenciar os resultados (com pequenas ações quase despiciendas). No entanto, o seu neto não se revelou “a segura promessa” inicial e a sua equipa não melhora.
No campeonato seguinte age de forma dissimulada sobre os acontecimentos, mas mais violenta: inundações, falhas de eletricidade, etc.
Embora depois tente voltar a um perfil não interventivo, apenas de recetor do pulsar do estádio, este força-o a ações ainda piores de sabotagem do jogo.
Até que o estádio lhe exige o sacrifício supremo…

YÁÑEZ, Mirta. KID BURURÚ E OS CANIBAIS.


Num percurso de autocarro que a leva através dos lugares que marcaram a sua vida, a narradora, que faz quarenta anos, medita sobre quando começa a velhice. Vai também analisando as pessoas que frequentam o 19 à medida que entram e saem,
Assiste a um episódio de abuso sobre um velho pugilista, Kid Bururú, por alguém que lhe fora próximo.
A viagem de autocarro e os acontecimentos a que assiste levam-na a uma melhor compreensão de si própria.

PADURA, Leonardo. O CAÇADOR.


Há como que a sugestão de que estamos perante uma mulher que demoradamente se pinta e depois repentinamente remove toda a maquilhagem, O equívoco logo à frente se percebe. Trata-se de um homem. Este prepara-se para uma noite de caça, deixando à sorte o terreno onde exercerá essa caça. Tomará o primeiro autocarro que o destino lhe enviar.
O conto refere-se a lugares e modos de engate, assim como a diferentes comportamentos de homossexuais.
Percebemos que o protagonista se vê, na sua angústia e solidão, perto do suicídio. Ironicamente parece incapaz de o concretizar, porque exigiria uma grande sujeira.

VIDAL, Guillermo. O QUE É A FELICIDADE?


Três páginas de difícil compreensão. Há uma fotografia em que um homem se esvai em sangue. O narrador vai conjeturando sobre aqueles que estariam atrás de quem aciona o obturador. No final intui-se que esta é uma situação muitas vezes repetida: Alguém que é morto por se opor a um regime? Violência gratuita!?
Fragmento da realidade… absurdo…

ESTÉVEZ, Abilio. ENVIADO DE OUTRO MUNDO.


Conto carregado de simbolismo.
Libertação da presença de um marido defunto pelo aparecimento de um homem que supostamente vem do outro mundo.
Este é enviado pelo morto, que é feliz na sua nova situação, para que trate da sua família.
O narrador é o filho que nos mostra as reações da mãe: da assunção de que o homem é o diabo, até à aceitação de que lhes está a ser dada a oportunidade de voltarem a ser felizes.

COLLAZO, Miguel. UM CASO BICUDO NO NIAGARA.


Sobre a inclemência do sol cubano, dois homens falam sobre o modo como para cativar turistas se elide a sujidade e a miséria do povo. A conversa evolui para um problema jurídico da posse de uma construção sobre o terreno de outrem. Em grande parte parece um diálogo de surdos, embora um esteja definitivamente a tentar ajudar o outro.
O leitor vislumbra os meandros das dificuldades jurídicas em Cuba.
Depois de muita conversa o problema subsiste, a solução é protelada. Mas mais um copo, para refrescar o corpo e reduzir a angústia, vem mesmo a calhar.

BOBES, Marilyn. PERGUNTA A DEUS.


Mulher que casa com um turista francês mostra como Cuba acaba por ter mais valor e encanto de que a Toulouse para onde o marido a levou.

GARRIDO, Alberto. O BRAÇO E A TELA.


Partindo da Guernica de Picasso divaga sobre braços amputados, sobre outros quadros e pintores, sobre a guerra…

MEJÍAS, Rolando Sánchez. A NOITE DO MUNDO.


Uma mulher interroga-se sobre a importância da sua existência, sobre a sua relação com a rede de serem que a conformam.
O narrador salta para a breve história de uma dessas relações: o rapaz que no cinema se atreveu a acariciá-la e logo depois para um oleiro que também faz perguntas sobre a existência e a sua relevância.

SANTIESTEBAN, Angel. SUL: PARALELO 13.


Um grupo de soldados cubanos em Angola é atacado por um avião. Forçados a regressar a pé à base com feridos, não conseguem encontrar facilmente o caminho. Entre eles há um violinista cujas ações são estranhas para todos: prefere tocar a comer, protege mais o instrumento que o seu corpo.
Encontram uma casa, no meio do mato, de portugueses que lhes dão alguma assistência e, depois, lhes propõem trocar o violino por medicamentos e alimentos. O capitão obriga o soldado violinista a entregar o instrumento. O violinista segue-os sem dizer nada, mas todos se sentem culpados. Voltam a trás para recuperar o violino à força.
O capitão entrega o violino ao soldado, repreende-o e apreende-lhe a arma. Este pega no violino e afasta-se.

No fim do livro há um ficheiro com uma pequena nota biográfica sobre cada um dos escritores incluídos na antologia.


[1] Canção dos Beatles.