Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


domingo, 19 de fevereiro de 2017

DIÁLOGOS POÉTICOS?!



RUY BELO 1933 - 1978
LUZ VIDEIRA

Povoamento

No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera

In Aquele Grande Rio Eufrates.


Espera

Ainda o pardal
Solta o seu canto a medo,
Mas já no ondular
Do arvoredo
Eu vi o despertar de um cio novo.


Também meu corpo todo
Por ti espera.


Quando vens, Primavera!


In Maré Cheia. Ed. autor, 1970 (p.18)

Aparentemente Ruy Belo dialoga com a primavera que está a chegar. Há, no entanto, um tu que ama o eu no poema. E o título do poema é deveras intrigante.


Como no poema de Ruy Belo é um pássaro que anuncia a Primavera.
Mas aqui há um apelo direto à fruição da vida e à consumação do amor.

MIGUEL TORGA  1907 - 1995
LUZ VIDEIRA

São Leonardo da Galafura

À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!

in "Diário IX"

Galafura – São Leonardo

Não sonhei,
Vi.
Morava ali a Beleza
Nua, inteira,
Reino de assombro,
Sonho sem fronteira.

In As quatro estações. Atlântida, 1973 (p.17)


Miguel Torga canta-nos São Leonardo ao leme de um navio de pedra, a montanha, que se desloca muito lentamente do cais humano em direção ao cais divino, lavrando as ondas chãs de um rio de mosto de vinho fino, dito do Porto.


Luz Videira, no mesmo lugar, realça principalmente a assombrosa beleza do miradouro natural, enfatizando a experiência através do verbo ver em oposição ao sonhar. Mas acaba  sonhando…