Rui Miguel Fragas é pseudónimo literário de
Fui Féteira. O autor nasceu em 1964, em São Miguel de Poiares, distrito de
Coimbra. Naturalmente o pseudónimo escolhido mantém o seu nome próprio e vai
buscar os outros dois à sua terra natal, na qual abundam topónimos relacionados
com fragas. É professor de Filosofia e homem de teatro, tendo sido co-fundador
do Pateo das Galinhas – Teatro de Bico, sediado na Figueira da Foz.
Este é o seu terceiro livro publicado. Os dois
anteriores foram publicados em 2014 e 2015, respetivamente O NOME DAS ÁRVORES e
NÃO SEI SE O VENTO, ambos pela Poética Edições.
Com este novo livro, apresentado na
Figueira da Foz em 27 de fevereiro pp., obteve o prémio Aldónio Gomes,
patrocinado pela Universidade de Aveiro. Esta obra foi ilustrada pela atriz do
Pateo Jovem, Sofia Perié Barros, inspirada nos desenhos de máquinas de Leonardo
da Vinci.
Usa uma linguagem fresca, ainda que marcada
por uma estruturação complexa e algo críptica: frequentemente com conceitos
paradoxais. Os poemas vivem muito de ritmos e sonoridades bem conseguidas, que
ressaltam à primeira de uma leitura em voz alta, como deve ser lida toda a
poesia.
Aqui fica um exemplo:
Com o
cérebro nas mãos
o bibliotecário contempla os livros que erguem as paredes do
mundo:
livros que se abrem para outros livros que se abrem em
direção a um
sentido que se oculta. O cérebro do bibliotecário
é uma composição de máquinas em perpétuo movimento, uma
máquina no interior de outras máquinas
a roda lenta de uma máquina imóvel sobre o quadriculado da
alma, o
eixo de uma roda por entre as linhas cruzadas das mãos. E a
biblioteca
é um espaço finito de livros infinitos,
o incompleto alfabeto do pensamento, a prometida e
improvável
enciclopédia
e cada entrada é o inicio e o fim de um percurso que se
estende mais
para além, a serpente eterna das palavras a sibilar grafias
novas de
antigas ideias
porque é uma e una a língua que é bífida e o rosto de uma
folha é
o verso de outra. Sopra lá longe uma linguagem universal
a sombra fugaz do que nunca será dito e ainda assim nunca
deixou de
se dizer. Sopram reminiscências de todos os livros, retalhos
dos livros queimados nas fogueiras dos tempos
dos livros proscritos e enterrados nos túmulos de todos os
homens
proscritos
e de pergaminhos e tábuas e manuscritos
que foram caminhos
e agora são pó dos caminhos
por entre a aragem dos livros que um dia serão escritos e
dos que
nunca o serão, rascunhos de fundos alicerces fortuitas
metamorfoses e
ruínas futuras
e livros só sonhados, essa matéria palpável e verídica que
une o
mundo e o estilhaça
e lógicas e fórmulas que serão escritas por homens e
máquinas à
superfície da lua e que se perderão no espaço e se
encontrarão algures
para se voltarem a perder
e os últimos poemas, límpidos e obscuros, que os últimos
homens
escreverão sobre a areia dos desertos do futuro.
Cruzam-se causas que são efeitos, peixes com lagos por
dentro, flores
e frutos a dizerem árvores inteiras. Os labirintos são o
centro dos
labirintos
porque é no centro que se descobre a lonjura do centro.
Cruzam-se
tempos e seiva e espaços no quadriculado da alma
cruzam-se caminhos
e sangue e palavras nas linhas das mãos que seguram ainda o
cérebro do
bibliotecário
ainda a contemplar os livros que erguem e derrubam as
paredes do
mundo.
Notas:
Veja-se a analogia do título com a expressão, quase
lugar-comum, “com o coração nas mãos”.
Instaura a lógica da razão em detrimento da da emoção. Segue-se a constatação
de que o cérebro é a máquina perfeita (aquela com que todos os engenheiros
sonham): máquina de máquinas feita, em perpétuo movimento que roda, gira,
move-se, mas sem atrito, sem desgaste: “imóvel sobre o quadriculado da alma”.
A biblioteca que apesar da destruição de bibliotecas, bibliotecários.
ou de livros individuais, que apesar sua finitude, ainda assim remete para o
infinito… e os livros que alberga, protege, colecciona são capazes de derrubar
paredes e, paradoxalmente, a palavra é mais duradoura do que a pedra (em que
muitas vezes foi escrita).