Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


quinta-feira, 30 de outubro de 2014

ANTOLOGIA POÉTICA, Carl Sandburg



Carl Sandburg (1878-1967, de ascendência sueca, nasceu no Illinois.
Desde os treze anos que desempenhou as mais diversas tarefas e profissões, foi pau para toda a colher: distribuidor de leite, pedreiro, trabalhador rural, porteiro de hotel, carvoeiro, jornalista, escritor premiado… Chegou a estudar quando, cumprindo o serviço militar, esteve em West Point, mas teve de deixar pois chumbou os exames de Gramática e Matemática. Mais tarde entrou na universidade mas abandonou em 1903 sem qualquer diploma.
Depois de se casar teve casa em várias localidades, entre as quais na zona suburbana de Chicago, que aparece frequentemente nos poemas deste livro.

Sandburg escreveu livros infantis, uma biografia de Abraham Lincoln, poesia…, tendo ganho três prémios Pulitzer.

Nota bibliográfica baseada principalmente na apresentação feita por Louis Untermeyer e na autobiografia incluídas como prefácio deste livrinho.

Apresenta uma poesia do dia a dia, muito mordaz, em que valoriza pequenas coisas, factos, histórias, com uma vertente de crítica social muito acentuada.
Transcrevem-se dois poemas:

SOPA

Vi um homem famoso comer sopa.
Vi que levava à boca o gorduroso caldo
com uma colher.
Todos os dias o seu nome aparecia nos jornais
em grandes parangonas
e milhares de pessoas era dele que falavam.
Mas quando o vi,
estava sentado, com o queixo enfiado no prato,
e levava a sopa à boca
com uma colher.

SOUP

I saw a famous man eating soup.
I say he was lifting a fat broth
Into his mouth with a spoon.
His name was in the newspapers that day
Spelled out in tall black headlines
And thousands of people were talking about him.
When I saw him,
He sat bending his head over a plate
Putting soup in his mouth with a spoon.

Longe vai o tempo em que a poesia era vista como a expressão dos sentimentos, muitas vezes amorosos, de um “eu”, veiculados através de uma linguagem elevada e respeitando rima e métrica.
Ainda assim, este contar a “vidinha” revela muito interesse e grande intervenção social.
Afinal que é ser famoso? Que faz um homem famoso diferente dos outros?
No poema acima, este famoso é até descrito de forma negativa, comendo o caldo gorduroso com uma colher, como qualquer outra pessoa, mas com o queixo enfiado no prato.

No poema abaixo, uma das constatações mais importantes é a efemeridade da vida humana e mesmo dos materiais construídos pelo homem. Sobressai também o contraste entre o pensamento que se pretende profundo do poeta com o homem que é interrogado. Naturalmente para este último o seu destino era o local para onde se deslocava, enquanto que para o inquiridor se tratava do destino de tudo o que existe.

RÁPIDO

Viajo de rápido, num dos melhores comboios do país.
Lançadas através da pradaria, na névoa azul, no ar escuro,
correm quinze carruagens com mil viajantes.
Todas estas carruagens serão, um dia, montes de ferrugem;
homens e mulheres que riem
no vagão-restaurante, nas carruagens-camas, hão-de acabar em pó.
No salão dos fumadores pergunto a um homem qual o seu destino.
“Omaha”, responde.

LIMITED

I am riding on a limited express, one of the crack trains of the nation.
Hurtling across the prairie into blue haze and dark air
go fifteen all-steel coaches holding a thousand people.
(All the coaches shall be scrap and rust and all the men
and women laughing in the diners and sleepers shall pass to ashes.)
I ask a man in the smoker where he is going and he
answers: "Omaha."


SANDBURG, Carl (Seleção e tradução de Alexandre O’Neill). ANTOLOGIA POÉTICA - Tempo de Poesia n.º 4. Edições Tempo, circa 1961.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

SLAN, de A. E. van VOGT



Normalmente, os livros de ficção científica partem de uma ideia de avanço científico e, aqueles que são verdadeiramente bons, constroem à volta desse passo em frente uma nova sociedade coerente, prevendo todas as implicações possíveis.
Este, apesar de, para além das naves espaciais e da anti-gravidade, que já muitos tinham utilizado, surgiu com a energia atómica limpa e ligas metálicas muito mais resistentes do que até agora se conhecem, apresenta como principal motivo a evolução do próprio homem.
No princípio julgamos estar perante o confronto entre duas espécies diferentes: os slan e os humanos, sendo os primeiros produtos de experiências de um cientista, Samuel Lann – daí slan; depois somos levados a pensar que são três: os verdadeiros slan que apresentam por entre os cabelos tentáculos dourados, outros slan que não os têm e os humanos, sendo que os primeiros são capazes de ler as mentes de todos e comunicar entre si por telepatia.
Argonauta n.º 23
Um dos temas é, sem dúvida, a xenofobia, o medo do que se desconhece mas há também considerações sobre o governo dos povos, a propaganda e a desinformação a alimentar o medo e o ódio.
O enredo é bem conseguido. A certa altura poderíamos pensar que não haveria justificação para o surgimento ou desaparecimento de determinadas personagens, mas no fim o autor surpreende-nos com a coerência da sua introdução na história, justificando uma leitura para além do mero entretenimento. A história têm o fim aberto, indiciando a possibilidade de uma continuação. De facto, a sua esposa veio a publicar uma sequência a partir de um manuscrito inacabado.
O livro narra a história de John Thomas Cross, Jommy Cross, que com nove anos se vê órfão de pai e mãe. O pai deixara-lhe como legado a arma mais poderosa até então inventada, assim como outros estudos científicos. Esta arma deveria ser usada apenas como último recurso na sua sobrevivência e na persecução de fins altruístas. É obrigado a viver escondido, até ter maturidade suficiente para recolher esse legado escondido e depois volta a viver escondido na procura de soluções para os conflitos existentes e de outros slan. É essa clandestinidade que lhe permite desenvolver as suas capacidades e procurar os meios para conseguir os seus objetivos, nomeadamente o mistério da sua própria existência.
Afinal os slan com os sem tentáculos na cabeça, eram apenas a evolução própria da natureza, que através dos milénios permitiu que os seres evoluíssem e se modificassem. Tal como houve homo habilis, homo erectus, homo sapiens, haverá…
O fim deixa-nos a esperança que, apesar de uma guerra eminente, o homem há de evoluir para um ser melhor, mais generoso e clarividente.

VOGT, A. E. Van. SLAN. Dell.

(Tradução portuguesa na coleção Argonauta n.º 23)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A POMBA, Patrick Süskind



Jonathan Nöel, na casa dos 50, vive numa mansarda em Paris. É guarda de um banco. Tem uma vida monótona e sem sobressaltos. Aliás exatamente aquilo que ele deseja: «havia uns bons vinte anos que levava uma vida igual sem incidentes.» (p. 7)
Uma pomba, uma simples pomba ferida, que naquela manhã está no corredor que leva à casa de banho, e sujou a passagem com os seus dejetos, é o absurdo que rasga a realidade construída por este homem ao longo de cerca de três décadas.
É surpreendente como algo que interfere com as nossas rotinas nos pode desequilibrar, pois os medos e fobias em grande medida estão dentro de nós e não têm qualquer substância, são ridículos. Na verdade para lavar os excrementos deixados pela pomba um trapo e um pouco de água bastam, no entanto para lavar a porcaria criada por um cérebro doentio será preciso encontrar o esfregão eficaz, o que se poderá revelar difícil.
Como o bobo da corte de antanho, também Jonathan vai dizendo umas verdades a respeito dos seus concidadãos e da estratificação social.
O livro, para além da obsessão do protagonista, reflete sobre a sociedade.

SÜSKIND, Patrick. A Pomba. Editorial Presença, 1987

Outras obras do autor:
O Perfume


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O AFINADOR DE PIANOS, Daniel Mason




 Livro que apresenta um retrato da Birmânia entre Outubro de 1886 e Abril de 1887. Situa-se em plena luta pelo domínio total dos Estados Shan na Alta Birmânia.
A personagem principal é Edgar Drake, um afinador de pianos, ainda que tenha especial importância um major médico, Anthony Carroll, pois é devido à insistência deste que ele é contratado para afinar um piano Erard  em plena selva, que fora enviado pela coroa inglesa a pedido deste médico, uma vez que, aparentemente, através da música conseguia influenciar os homens e mesmo os príncipes shan.
Edgar Drake mostra-nos o que vê. Há belas e detalhadas descrições de lugares e ambientes, muitas dinâmicas, pois descreve a partir de meios de transporte.
Um pequeno exemplo de descrição: «…a Birmânia surgiu como que de trás de uma cortina levantada num palco. Ao sair para a rua, a multidão enxameou à sua volta. Voltou-se. Atropelavam-se mãos que estendiam cestos de comida. Havia mulheres que o olhavam fixamente, com rostos pintados de branco e segurando nas mãos grinaldas de flores. Aos seus pés, um mendigo fez pressão contra a sua perna, um rapaz choroso e coberto de crostas e chagas abertas e ele voltou-se novamente e tropeçou num grupo de homens que transportavam caixotes de especiarias suspensos em varapaus compridos…»
O fim perfeitamente verosímil é no entanto muito diferente do que se podia esperar, revelando o autor a capacidade de contrariar o expectável e de surpreender.

É o primeiro livro deste autor, baseado em sólida pesquisa, de acordo com as fontes mencionadas. Sobre o autor a badana diz-nos, o seguinte:
«Daniel Mason fez o bacharelato em Biologia, em Harvard, e passou um ano a estudar a malária na fronteira da Birmânia com a Tailândia… Estuda actualmente na Universidade da Califórnia, em São Francisco, enquanto ultima um novo romance que terá Pedro Álvares Cabral com protagonista.»

Assim que o encontrar, lê-lo-ei, pois dar-me-á certamente tanto ou mais prazer do que este!

MASON, Daniel. O AFINADOR DE PIANOS. Asa, 2003