Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


sexta-feira, 26 de setembro de 2014

UMA OUTRA VOZ, Gabriela Ruivo Trindade




Estamos perante um primeiro livro de uma autora ainda jovem e que me faz desejar ler um segundo, pois este é extraordinário.
Este livro é a biografia ficcionada de uma família, alegadamente baseada na família da autora. Há breves referências à implantação da República e também ao 25 de Abril em função das personagens cujas vidas se contam.
A história é contada por cinco vozes diferentes cujas referências se sobrepõem e se complementam. A restante narração surge pela voz daquele que é personagem principal, sob a forma de um diário fragmentado, supostamente descoberto por uma familiar.
O epílogo, ou melhor os dois epílogos são quase redundantes, pois o próprio Mariano Serrão caracteriza no seu diário quem será capaz de contar a sua história.

No sentido da promoção da leitura, a declaração do júri, que lhe atribuiu o prémio LeYa em 2013[1], é uma garantia de qualidade:
«O júri destaca a consistência do projecto narrativo que procura, através de várias gerações, e com o foco em personagens de grande força, sobretudo femininas, retratar a transformação da sociedade e dos modelos de vida numa cidade de província, no Alentejo. Merece destaque a originalidade com que a autora combina o individual e o colectivo, bem como a inclusão da perspectiva do(s) narrador(es) no desenho cuidado de um universo de vastas implicações mas circunscrito à esfera do mundo familiar ao longo de um século de História. Também a exploração ficcional de registo diarístico e a inclusão da fotografia dão um sinal de modernidade formal a esta obra.»

TRINDADE, Gabriela Ruivo. Uma Outra Voz. Leya, 2014



[1] Manuel Alegre (Presidente(, José Carlos Seabra Pereira, José Castello, Lourenço do Rosário, Nuno Júdice, Pepetela e Rita Chaves.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

A REVOLTA DOS MICRONAUTAS, Gordon Williams



 Antes deste livro o autor[1] escreveu Os Micronautas e A Microcolónia. No entanto a leitura deste não depende da dos primeiros.
O mundo devastado pela guerra, pela fome e pelo medo decide clonar cerca de 10.000 seres humanos, através de um processo irreversível, reduzindo o seu tamanho em cerca de 35 vezes. A colónia, projeto Arcádia, é fechada num parque e são colocados sinais identificando o local como radioativo os de outros perigos químicos, que ajudam a isolar e proteger o local.
O tempo passa e os criadores acabam por desvalorizar e mesmo esquecer a colónia. Outros governantes tomam as rédeas do poder e tomam conhecimento da existência desta experiência, considerando-a uma aberração e, em princípio, pensam  destruí-la logo que se inteirem da sua localização.
Os pequenos homens, apesar das desavenças que já existem entre eles, têm de se unir para lutar pela sobrevivência, mesmo contra os próprios criadores.
Há um grupo de dissidentes, que fugiu do poder central, quase que ditatorial, que vivem livres mas quase como selvagens. Mas nesse pequeno grupo nasceu uma criança, promessa de futuro, algo que não foi conseguido no resto da colónia. Uma esperança que a governação da colónia quer assumir como de todos.
Ambos os grupos têm de lutar contra um homem, tamanho inteiro, criminoso, que talvez por não saber ler os sinais de perigo, entrou no parque e cria uma tão grande ameaça que os força a unirem-se para se salvarem.
O intruso acaba por morrer, depois de ter bebido em excesso bebidas alcoólicas encontradas numa casa do parque, com os pulsos e os tornozelos cortados pela ação conjugada de centenas de pequenos homens. Este ato equivale à assunção de que são seres de espécies diferentes.
Ironicamente o chefe dos revoltosos vem a ser o comandante de toda a colónia. Fica, no entanto, a certeza de que este não tem capacidade para gerir um tão largo número de seres, alguém terá que organizar esta sociedade: os homens que têm capacidade para pensar, para ver além do imediato.
Acaba o livro com a promessa do novo líder mundial, o cego e fanático religioso, Hallot, de que assim que souberem onde fica Arcádia, esta será varrida do mapa.
Um dos mais interessantes temas abordador é o estudo, ainda que implícito, da natureza humana: as estruturas de poder, a emoção que domina a razão, a superioridade do coletivo sobre o individual…

Nota: Aparentemente, nenhum dos três livros desta sequela foi traduzido para português.

WILLIAMS, Gordon. Revolt of the Micronauts. Bantam Books, 1981.


[1] Escocês nascido em 1934, jornalista e guionista de televisão, produziu mais de 20 títulos, dois dos quais foram levados ao cinema. De Os Micronautas foi escrito um guião para cinema, mas até agora não foi realizado.

domingo, 21 de setembro de 2014

O CAVALO ESPANTADO, Alves Redol



«-E o cavalo amarelo [cavalgado pela Morte] espantou-se e vai pelo mundo com o freio nos dentes.»
«-Não foi só o cavalo amarelo que se espantou, Pedro. Espantaram-se os quatro. Foi por isso que fugi…» (p. 288)

A citação acima justifica o título do romance.
Pedro e Jadwiga referem-se aos cavalos dos Cavaleiros do Apocalipse: branco, Peste; vermelho, Guerra; negro, Fome e amarelo, Morte (destruindo pela fome, pela guerra e pela peste).

Alves Redol, apesar de ser considerado um dos marcos do neorrealismo português, neste romance dedica-se mais à análise psicológica das personagens, através de uma estratégia de narração que, penso, na altura era algo invulgar: as três personagens principais narram alternadamente a sua visão dos factor, existindo ainda um narrador fora da história. Isto permite a objetivação dos diferentes pontos de vista e um conhecimento mais íntimo das personagens.
Redol apresenta no prólogo do romance uma explicação sobre a envolvência da história e caracteriza desde logo as personagens principais, aliás titula este prólogo de “o escritor antecipa-se e fala das personagens antes que outros as encontrem e conheçam”.
Assim, as personagens são Leo e Jadwiga, casal de judeus austríacos fugidos da ameaça nazi, e Pedro, secretário de um consulado numa Lisboa «de aparência sonolenta, entroncamento de foragidos e espiões, vindos à babugem de sol e de sossego.», que apõem vistos de permanência nos passaportes deste casal apesar de ter praticamente a certeza de que são documentos falsos.
Eis um extracto da caracterização destas personagens feita pelo autor:
«Três personagens, dizia eu: dois homens e uma mulher na teia das frustrações…»
«…A mulher, austríaca […] cabotina e inquieta, loura, talvez bonita por causa dos seus olhos verdes…» para quem «a literatura é também agradável sedativo…»
Pedro, «homem taciturno, contraditório, ora abúlico, ora exaltado, quase sempre dramático, vivendo entre uma inteligência serena, rigorosa na aparência, e os instintos que a destruíam quando se soltavam da prisão construída por aquela.» Assim, «deambula entre o querer e o dever».
«Leo, homem de negócios, fora dos seus negócios é o marido, às vezes ciumento e ainda apaixonado pela mulher.»

Ora esta nunca o quis, apenas aceitou casar com ele para fazer a vontade ao pai, importante banqueiro judeu. Estão juntos apenas pela necessidade de viajarem como casal, pela compra daqueles passaportes falsos.
Ela tenta -aparentemente chega mesmo a apaixonar-se por Pedro-, que este lhe corresponda, mas ele consegue, neste caso, sobrepor a razão aos sentimentos, pois também ele a ama: «Nem um triângulo amoroso soubemos fazer.»

O livro é muito interessante do ponto de vista da análise de caracteres, mas também em relação à descrição do ambiente lisboeta na eminência da II Grande Guerra.

REDOL, Alves. O Cavalo Espantado. Portugália Editora, 1960

domingo, 14 de setembro de 2014

CONTOS SILÁBICOS, Fernando Eloy do Amaral




Afirma no texto inicial, a que chama Pórtico, que este estilo, se de estilo se trata, se deve à natural preguiça e à velocidade da vida.
Estes textos contam, em muito poucas palavras, histórias relevantes de um quotidiano intemporal e por eles perpassa um certo pessimismo, mas também uma saudável ironia. Seguem-se três exemplos:

O ciclo da vida que inexoravelmente cairá no esquecimento:

«As horas passam. Passam. Passam. O bébé nasceu.
As horas passam. Passam. Passam. O homem sofreu.
As horas passam. Passam. Passam. O homem morreu.
As horas passam. Passam. Passam. Já ninguém mais chora.» (p. 21)

A fatalidade da morte de uma criança nunca esquecida:

«Um brinquedo. Uma família que já não chora. Um berço
vazio. Um brinquedo sempre à espera.» (p 25)

O mundo ao contrário, a inversão das relações hierárquicas, a subjugação aceite através da ideia de pertença. O peso da rotina. Todas as vidas estão circundadas de uma gaiola. Apenas umas são maiores do que outras:

«Um pássaro de gaiola espera que o seu dono saia da prisão
Do dia a dia.» (p. 77)

Nota: O livro é profusamente ilustrado por AVICENTE.

AMARAL, Fernando Eloy do. Contos Silábicos. Edição
de autor, 1959


terça-feira, 9 de setembro de 2014

O FARAÓ, de Boleslaw Prus



Este livro, escrito em 1895, relata o fim do reinado do faraó Ramsés XII e o breve reinado de seu filho Ramsés XIII (séc. XI b.C.). Ora ambos são personagens ficcionais (a 20.ª dinastia acaba com Ramsés XI), tais faraós não existiram. Deduz-se, portanto, que o autor não pretendeu escrever um romance histórico. No entanto todo o texto revela um conhecimento profundo da vida do Egipto e da forma como essa sociedade se organizava. Há belas descrições dos espaços e de diversas situações pragmáticas do dia a dia deste povo.
Retrata uma sociedade em que os nobres e o clero usufruem de grandes privilégios e de grande riqueza, enquanto o povo vive escravizado e na miséria.
O ponto de partida é a ideia de que o novo faraó pretende suavizar a vida do seu povo. Para isso precisa de dinheiro, visto que o tesouro do país está delapidado, mas os sacerdotes dos vários deuses e os templos nadam em ouro. Gera-se um confronto entre o faraó e o sumo sacerdote pelo controlo do poder.
Os sacerdotes são muito mais sábios do que o jovem faraó, que apesar de se notabilizar na guerra, não é capaz de perceber a gestão do país e as razões de estado.
Os sacerdotes vão-lhe dando a ilusão de que manda. Apesar de este ser suficientemente arguto para descobrir muitos dos segredos do clero e se aperceber de que nem sempre consegue compreender as várias vertentes dos problemas com que é confrontado, a verdade é que vai sendo subtilmente enganado, mesmo por muitos daqueles em que tinha depositado a sua confiança.
O povo é descrito como um cata-vento, facilmente influenciável por agitadores de ambos os lados, mas os sacerdotes conseguem dominá-lo através de milagres, que não são mais do que a aplicação do conhecimento científico que detêm, quer a nível da química, quer da astrologia, v.g., a previsão de um eclipse do sol permite-lhes transformar uma situação aparentemente desesperada num vitória retumbante.

Apesar de muito extenso (533 pp., nesta edição), é de fácil leitura.
O autor (1845-1912), de acordo com uma nota no final do livro, pretendeu criar um paralelismo com a situação na Polónia no séc. XIX, esmagada pelo jugo dos czares.

PRUS, Boleslaw. LE PHARAON. Marabout, 1959