Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


domingo, 27 de abril de 2014

Poemas com Pessoas, Vasco Graça Moura



Deixou-nos hoje um grande escritor.

Transcrevo um poema do seu livro Poemas com Pessoas.

O poeta recorda uma realidade de outros tempos, uma memória da meninice. O poema é um hino à leitura e à sua magia.

biblioteca itinerante


quatro crianças de chapéu de palha
e bibe curto às risquinhas, e livro aberto no colo,
junto às rochas, na praia,
e um cão, mas esse era analfabeto de certeza,
a espreitar a cena,
e uma praça da guarda que ia
a passar por ali, na pasmaceira,
mesmo a propósito,
enquanto o mar parecia absolutamente
pintado a tinta muito azul.


a história pode começar assim,
por ser a dos meninos que, nas páginas abertas,
iam a caminho da floresta e se enfronharam
em tanta vegetação mágica, ou a dos meninos
que escorregaram por um buraco encantado abaixo
e não conseguiam sair de lá,
nem queriam,
ou a dos meninos que, na correria,
jogando à bola, à macaca, à cabra-cega,
aos piratas, aos polícias e ladrões,
e a tantas outras coisas a que jogam os meninos
e as meninas, por exemplo, apanhar conchas
mesmo que só na imaginação, se perderam no mundo
que não brinca.

primeiro foi o cão.
ladrou, ergueu a pata, pôs-se
à frente deles, a dar à cauda muito contente, e quis
ajudá-los a encontrarem uma saída, mas
desorientou-se facilmente,
por ser ainda cachorrinho e estar
há muito pouco tempo nesta história.
deu-se o caso de passar
segunda vez o guarda. mas o guarda,
que não era da terra e não sabia
nada de crianças, nem consta que
tivesse biblioteca, voltou para o quartel
sem dizer nada a ninguém,
porque achou que não podia fazer nada.


já era de esperar, o sol ia alto.
quatro meninos assim,
de chapéu de palha e bibe curto às risquinhas,
entre a sombra do rochedo e a areia
tão brilhante que até fazia mal à vista,
de livro aberto no colo e vozes
argentinas, tinham de descobrir
o caminho, mesmo com esforço, mesmo
muito devagar, mesmo que a aragem quisesse
voltar as folhas mais depressa do que eles,
empurrando-as como as pás de um catavento,
num sobressalto de palavras e de imagens coloridas,
soletrando aplicados cada página,
até à hora da merenda.


Vasco Graça Moura,
Poemas com Pessoas. Quetzal (p. 21-22)

segunda-feira, 21 de abril de 2014

JOSÉ, Rubem Fonseca




Tal como em Bufo & Spallanzani este livro debruça-se sobre a escrita e os processos criativos. No entanto este é assumidamente autobiográfico.
José, o protagonista, nasceu numa cidade de Minas Gerais (Juiz de Fora «ele se orgulha de ter nascido em Minas, gosta quando o chamam de escritor mineiro» (p.41)), tal como José Rubem Fonseca, e como ele foi depois viver para o Rio de Janeiro, ainda que a vida do José personagem seja situada num tempo anterior à do José autor.
O livro é um relato de vivências desde criança até uma idade entre 20 e 30 anos: «José [1] resolveu seguir o exemplo de Isaac Beshevis Singer, que ao escrever a sua autobiografia parou nos 30 anos. José resolveu parar um pouco mais cedo.» (p.111)
Na infância é um garoto que, metaforicamente, vive em Paris, pois consome toda a literatura francesa que existe em sua casa e que uma tia lhe envia, desligando-se da vida em torno, que mais tarde virá a apreciar.
No período em que vive em Minas a sua família é rica, mas acaba por perder esse estatuto. Mudam-se para o Rio e enfrentam a adversidade com grande coragem.
José com doze anos encontra o seu primeiro emprego como “entregador”: «Entre as muitas profissões que José teve em sua vida essa de entregador foi a mais agradável de todas, certamente mais prazerosa do que a de escritor.» (p.29). A primeira permite-lhe calcorrear toda a cidade e conhecer assim minuciosamente a sua geografia o que se virá a relevar útil na actividade de escritor; a última parece impor-lhe saudades da infância, pois é menos agradável que a primeira, e levá-lo pelos caminhos tortuosos da memória.
Para além da literatura, logo de miúdo, interessa-se pelo cinema e consegue assistir a muitos filmes através de um estratagema que lhe permite entrar numa das várias salas de projecção existentes sem ser detectado.
O romance vai fazendo, como se decorresse das próprias vivências de José, a história do Rio de Janeiro, nomeadamente a nível de diversas manifestações sociais e dos costumes e moral a elas ligados. Há ainda algumas incursões ao passado, relatando o que ouviu a familiares, como é o caso de factos relacionados com as lutas liberais portuguesas (D. Pedro e D. Miguel em litígio pela coroa portuguesa).
A propósito do Carnaval, assunto com lugar de relevo e alvo de magníficas descrições, critica a licenciosidade dos bailes carnavalescos para gente fina, valorizando o divertimento do povo na rua pela sua autenticidade.
José que, como atrás ficou dito, se torna escritor, deixa-nos a receita: saber ler; motivação; paciência; imaginação e coragem para dizer o que é proibido dizer (ver p. 95).
Certamente que Rubem Fonseca fala de si ao longo do livro, v.g., afirma recorrentemente que José escreveu sobre isso  noutro lado, remetendo nitidamente para os seus livros. No entanto «…todo o relato autobiográfico é um amontoado de mentiras – o autor mente para o leitor, e mente para si mesmo.» (p.7)


[1] No entanto este não é um relato de primeira pessoa. É uma outra entidade, o que cria um certo desconforto para o género memorialista.

FONSECA, Rubem. JOSÉ. Sextante, 2012


quinta-feira, 17 de abril de 2014

OS PÉS LUMINOSOS, Jorge Sousa Braga



Jorge Sousa Braga, poeta e médico.
O poeta do Herbário, Assírio & Alvim, 1999, com belos poemas para crianças que todos os adultos deveriam ler. A este livro foi atribuído o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura Infantil.
Do livro A Greve dos Controladores de Voo, Fenda, 1984, recordo a fina ironia de, p. ex., «Todos aqueles que nos primeiros dias de Março perscrutavam atentamente o céu ficaram desapontados. este ano as andorinhas chegarão atrasadas devido a uma greve dos controladores de voo.»

Do livro Os Pés Luminosos, Centelha, 1987, aqui ficam dois poemas que, ainda que não respeitem esquemas métricos, são bem cadenciados:


DESERTO

Dantes havia homens que se retiravam para o deserto. Para melhor se conhecerem, para comunicarem com Deus, mas nenhum – penso – para conhecer o deserto. Alimentavam-se de mel e gafanhotos, quando não jejuavam.

Agora foi o deserto que se instalou no meio de nós. E os seus desígnios não são menos obscuros.


CONSTELAÇÕES

As estrelas mostram-se hostis a qualquer tentativa de aproximação. Em alguns milhares de anos, tudo o que conseguimos fazer foi agrupá-las em constelações. Mas será que a última estrela da cauda da Ursa Maior sente alguma identificação com uma das estrelas da cabeça? Duvido. E o mesmo se passa com as estrelas de Andrómeda, Orion, Centauro, Cassiopeia. A sua – como a nossa – solidão é enorme.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

BUFO & SPALLANZANI, Rubem Fonseca. Sextante, 2011.



O narrador é Gustavo Flávio, escritor obcecado por sexo, que surge também em outros livros seus. Propõe-se escrever Bufo & Spallanzani, livro pelo qual já recebeu adiantamentos e, por isso, é pressionado pelos editores. Em certa medida este escritor/narrador é o próprio escritor R.F., pois sendo o primeiro personagem da história não poderia narrar mais do que aquilo que viu e lhe contaram, o que não é o caso, pois conhece o que as outras personagens dizem e fazem em lugares bem distantes.
Tudo o que Gustavo Flávio escreve para a abertura de Bufo & Spallanzani cabe em três páginas (115-118). Spallanzani, sábio, padre e investigador, conduz uma experiência em que junta um casal de sapos da espécie Bufo, e o sapo, apesar de o sábio lhe queimar as patas traseiras, continua a cópula com a fêmea até à morte, mas antes da sua garganta sai um som belo e harmonioso.
Naturalmente surgem várias perguntas:
Que simboliza isto?
Quem é o sapo no livro? (O próprio Gustavo Flávio implica que gostaria de o ser, na frase inicial, quando diz para a sua companheira: «Você fez de mim um sátiro (e um glutão), por isso gostaria de permanecer agarrado às suas costas, como Bufo, e, como ele, poderia ter minha perna carbonizada sem perder essa obsessão».
Será que este livro deveria ter outro título?…
Ainda que no início, depois da ocorrência de uma morte misteriosa, pudéssemos esperar um policial, este livro é em grande medida um livro sobre a escrita, o escritor, personagens, temas… Abundam citações sobre a arte de escrever, Há quase que um confronto com o leitor no sentido de lhe provar quão pequena é a sua sabedoria comparada com a erudição do autor sobre este tema. Para que o leitor não se confunda toma posição sobre género literário: «se isto fosse um romance […] teria um fim pífio […]. Mas isto, repito, não é um romance» (p.173). Na sequência disto afirma ser a obra do tipo memorialista.
O sexo é tema recorrente. Aparece sempre em linguagem vernácula, violenta e sem eufemismos. Critica mesmo os escritores que apresentam as suas personagens como figuras assexuadas que expressam “paixões platónicas ou metaforizadas”.
Um outro tema importante é o suicídio, apesar de surgir apenas no início e no fim da obra.
O livro critica tamvém várias atividades sociais. Por exemplo, o desporto surge como «abominável metáfora armamentista e de violência de povos e indivíduos.» (p.8)

Algumas citações sobre a escrita:
«O valor da poesia está no seu paradoxo, o que a poesia diz é aquilo que não é dito». (p. 18)
«Meus livros devem ser lidos com sofreguidão, sem interrupção…» (p. 30)
«…os escritores detestam a confusão e a desordem […] Rejeitamos o caos mas repudiamos ainda mais a ordem…» (p. 101)
«Words are, of course, the most powerful drug used by mankind.» (p. 110)
«Talvez seja esse mesmo o destino final de todos os papéis escritos, cartas, livros, testamentos, contratos escrituras, depoimentos… o lixo…». (p. 205)
«Se eu fosso Victor Hugo, o senhor viraria meu personagem.» (p. 207) Afirmação cheia de ironia, pois de facto Gustavo é personagem de Rubem Fonseca e o policial Guedes é personagem de Gustavo.

Fonseca, Rubem. Bufo & Spallanzani, Sextante, 2011.