Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

DIA DE NATAL



Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?)
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente acotovela, se multiplica em gestos esfuziante,
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
E como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus,
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!

E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

GEDEÃO, António. Máquina de Fogo, 1961




Naturalmente, este poema poderá ser encontrado em muitos outros lugares da net.
Foi escolhido não apenas por ser Natal, mas por incluir uma das mais inteligentes criticas ao mesmo.
Levanta questões importantes: Há dias para ser bom?;  Devemos convencer os nossos semelhantes a aceitar a sua situação ou ajudá-los a melhorá-la?; Há inimigos que merecem ser perdoados e outros não? ...
Para além disso é fácil perceber a crítica à hipocrisia, ao consumismo e mesmo à perversão de valores morais.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

GAIVOTA, Maria Rosa Colaço



A autora dedica o livro a todas as crianças que,como Alfredo, são símbolo de sonho e de esperança.
Conto que narra um dia na vida de Alfredo, dito Gaivota:
«Porque me chamam Gaivota?
Está mesmo a ver-se…tenho passado entre os barcos e o Tejo, em cima deste paredão [Cacilhas], correndo e escorregando nestas pedras húmidas, mais de metade  da minha vida: às vezes, até a pele me sabe a sal.» (p. 9)[1]
Alfredo é-nos apresentado como um miúdo pobre na zona de Cacilhas. Vive ao deus-dará, fazendo de tudo um pouco, ou nada. Vive entre a raiva da sua situação e o deslumbramento da vida que o cerca.
Apesar da narração ser de terceira pessoa, passa frequentemente para o ponto de vista do próprio Gaivota, que nos interpela e é interpelado pelo narrador, em que questiona as suas memórias de um tempo mais feliz.
É a época do Natal e estamos perante uma criança desiludida, no entanto as suas reflexões produzem em nós um desejo de pensar também sobre a vida.
No final, perante a proposta de emprego como aprendiz de mecânico toda a felicidade perdida retorna, apesar da perda do pai em condições que não são explicitadas, de acossado pelo padrasto e descuidado pela mãe.
COLAÇO, Maria Rosa. GAIVOTA. Edições Nave, 1.ª ed., 1982.


[1] A alcunha vem do facto de correr sobre os pontões de braços abertos.