Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


sábado, 28 de setembro de 2013

Palomar, de Italo Calvino



O livro é composto por vários segmentos, aparentemente sem grande coesão. Estes, tal como consta da nota final, dividem-se em predominantemente descritivos, narrativos ou meditativos, sendo que todos incluem as três vertentes.
O sr. Palomar, nome motivado pelo observatório homónimo em San Diego, Califórnia, observa o mundo que o rodeia: objetos, animais, seres humanos.
O sr. Palomar vai interrogando as suas observações e os seus pensamentos sobre elas. As várias hipóteses que lhe são presentes não resolvem os problemas em causa.
Há momentos em que decide restringir-se ao observável:
«Mas talvez seja exactamente essa desconfiança em relação aos nossos sentimentos que nos impede de nos sentirmos à vontade no universo. Talvez a primeira regra que me devo impor seja: ater-me ao que vejo.» (p. 47)
Outras vira-se para dentro de si ou tenta colocar-se fora si para se observar, como na velha perspectiva de alguém que está à janela a ver-se passar a si próprio.
Vezes há ainda em que os automatismos civilizacionais levam a melhor sobre as suas intenções, como, quando, depois de esperar algum tempo para ser atendido numa loja de queijos em Paris, e aproveitando o tempo de espera para tentar dominar a nomenclatura dos espécimes expostos, acaba por pedir o óbvio, o que os turistas pedem, e não aquilo que pensava ter de experimentar. (p. 79-82)
No fim, há pelo menos duas mensagens interessantes: primeira, antes de se ter quaisquer pretensões a conhecer o mundo / universo, “conhece-te a ti mesmo”; segundo, provavelmente quando alguém tentar ser de tal modo isento que só lhe reste fazer de morto, morrerá.
Sumariando, o sr. Palomar não é totalmente objetivo, mas tenta sê-lo, só que enferma de uma tendência insuperável para problematizar o que vê, o que pensa que vê, o que pensa que pensa… Assim, todas as suas observações resultam em paradoxos. Ele acaba desiludido, porque, quando julga que poderá ter captado o essencial do problema e vislumbrar uma explicação compreensiva do funcionamento do mundo, vê que está perdido.

Uma outra vertente a explorar é a crítica a vários aspectos da nossa sociedade, que está disseminada pelos vários segmentos.
Por exemplo:
Renúncia ao saber livresco: Ao observar Júpiter «…tem de permitir à sua imaginação que se dispa das roupagens que não são as suas, que renuncie a exibir um saber livresco.» (p.47).
Às maleitas das instituições públicas e aos que delas vivem: falando sobre os pombos «…uma progénie degenerada e imunda e infecta que não é doméstica nem selvagem, mas que está integrada nas instituições públicas e, como tal, é inextinguível.» (p. 59)

O livro é interessante de ler, mas não fácil, principalmente se se investir em compreender todos os problemas que o autor nos coloca, através das observações do sr. Palomar. As descrições são muito interessantes e de uma incrível minúcia. É um livro para muitas leituras. Impossível esgotar o seu sentido com uma só leitura.

Nota: As páginas referem-se à edição da Teorema, 2009.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

OS GNOMOS DE GNU, Umberto Eco e Eugenio Carmi



Encontrei, no passado sábado, um livrinho de literatura infanto-juvenil, com texto de Umberto Eco e ilustrações de Eugenio Carmi: Os Gnomos de Gnu.
Ignorava que Eco escrevesse para crianças, mas o livro  surpreendeu-me. É extraordinário. Fiquei a saber que escreveu outros, com o mesmo ilustrador: A bomba e o general e Os três astronautas, ambos editados pela Quetzal Editores em 1989. Tentarei encontrá-los.
Simples e eficaz. A mensagem, de carácter ecológico, transmitida com uma linguagem bela, quase poética, é capaz de cativar pequenos e não tão pequenos.

O imperador da Terra, presume-se que a nossa, quer que lhe descubram algo que ainda não foi descoberto. Perante a impossibilidade de o fazer neste planeta, envia um explorador galáctico que, depois de muita porfia, encontra um pequeno planeta habitado, Gnu, nos confins da galáxia, habitado por pequenos seres, os gnomos de Gnu.
Aterra a sua nave e, perante os habitantes, reclama a descoberta e exige a aceitação da soberania do seu Imperador. Os gnomos respondem-lhe que julgavam ter sido eles a descobrir o descobridor, mas não fazem questão e estão dispostos a aceitar a fantástica superioridade e avanço que este lhes anuncia e propõe.
O explorador mostra-lhes o benefício que isso lhes trará e assesta o seu megatelescópio megagaláctico sobre a Terra. Mostra-lhes os avanços da ciência e da tecnologia.
Mas os gnomos vão espreitando e veem: cidades completamente obnubiladas por fumo de fábricas; o mar poluído por descargas de petróleo, lixo…; o campo pejado de lixo; o trânsito caótico de veículos; hospitais para dar pulmões a quem fumou, curar infecções de quem se drogou…
Até que os gnomos não querem ver mais e propõem-lhe ir à Terra para “nos” descobrir. Manteriam em bom estado os jardins, plantariam árvores novas, cuidariam das velhas, limpavam os plásticos…, criariam filtros para as chaminés, ensinar-nos-iam a passear a pé… e após alguns anos a Terra seria tão bela como Gnu.
O explorador regressou com essa proposta para o Imperador, mas logo toda a máquina política e burocrática se opôs, emperrando de tal modo o processo que, até hoje, os gnomos de Gnu não obtiveram resposta à sua oferta.
Talvez um dia deixaremos vir os gnomos de Gnu à Terra.
Mas, mesmo que eles não venham, não poderíamos fazer nos aquilo que eles se propunham fazer?

Numa biblioteca escolar dará, certamente, uma bela “Hora do Conto”.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

ABERTURA, de Carlos Monteiro dos Santos



ABERTURA

Ao Daniel Filipe

Este é o tempo

De incendiar a palavra de quem
no combate   sabe inventar o amor

Este é o tempo

Dado como destino
àqueles   donos de nada
no mundo tornados rebeldes
de novo   insurgidos na vida

Perdoada a nossa antiga traição
entra-nos   de súbito
em casa   um inesperado raio de sol

É como   pela primeira vez
ver   finalmente   alguém
à nossa estender a sua mão


Carlos Monteiro dos Santos, in Uma Parcela do Todo: Antologia Poética (1958-1990), Campo das Letras, 2001 (p. 33)

Selecionei este poema, primeiro porque é dedicado a Daniel Filipe e, intertextualmente, se liga a poemas como “A invenção do amor”; segundo pelo seu apelo à ação «Este é o tempo», mas ação em que o incêncio e combate do início se transformam no raio de sol e no estender de mão do final; terceiro, porque, numa época de crise, que foi a dele, o poema poderá iluminar a crise, que é a nossa, com esta belíssima imagem de fraternidade e de esperança.

Sobre o autor, transcreve-se a nota da contracapa.

Carlos Monteiro dos Santos

«Nasceu em Sena (Beira), Moçambique, em 1934.
Foi publicitário, editor e técnico editorial em diversas agências de publicidade portuguesas e no Instituto do Livro e do Disco de Moçambique, em Maputo, do qual foi posteriormente delegado em Portugal.
Poemas da sua autoria estão incluídos em diversas antologias, designadamente: No Reino de Caliban, Manuel Ferreira; Tendências Dominantes da Poesia Portuguesa da Década de Cinquenta, J.B. Martinho, e Vinte Poetas de Moçambique, Maria José Mendonça e Nélson Saúte.»