Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

OLIVER, Valentí Gómez i; RACHEWILTZ, Boris de, Os Olhos do Faraó, 2006


Assim como o actual governo da República, farto em despesas evitáveis, privilégios aos ricos e poderosos, que levam à destruição do nosso tecido social, exponenciando a revolta e o crime e reduzindo à miséria a classe trabalhadora, assim o rei Neferkara Pepi 2287 a.c. - 2187 a.C.) destrói com erros idênticos o seu reino, gerando guerras intestinas, destruição, roubos, profanações…

No caso deste livro, cuja acção se situa nos finais do 3.º milénio a.C., surge também como motor da queda o luxo dos sacerdotes, principalmente dos seguidores de Toth, e a sua actuação política baseada na sede de poder.

Para além dos erros civilizacionais, o livro tem outros motivos de interesse:

  • Um primeiro apontamento, a epilepsia vista como doença divina:

“- É um louco de deus.”
“Tratava-se de uma daquelas pessoas afectada pelo mal dos espasmos que, quando tinham um ataque, com os olhos revirados e a boca a espumar entre os dentes rangentes ao ponto de se partirem, de vez em quando proferiam mensagens divinas.” (p.31)

  • Como foram erigidas as pirâmides?

O transporte das grandes pedras em barcas pelo Nilo. O deslizamento sobre rolos de madeira muito dura. A construção de rampas em ziguezague em tijolos de barro cru…

  • A este propósito surge um problema ainda mais interessante: a questão de saber se a pirâmide dedicada ao soberano durará eternamente, uma vez que estava a ser construída com materiais de menor qualidade do que a do ser antepassado Kufu.

Pergunta-se: “- Durará eternamente como a de Kufu?”

O Grande Arquitecto responde:
“- Nada é eterno nesta terra. Dia virá em que o último bloco da pirâmide de Kufu se tornará também ele pó, misturando-se com a areia do deserto. Talvez só o nome do soberano sobreviva na memória das gentes. Creio que seja este o verdadeiro sentido da imortalidade.” (p. 137-138)

De facto, vezes sem conta se terá levantado a problema: O que dura mais? A pedra ou o que nelas foi escrito? Os monumentos ou as palavras?


Por tratar este tema é famoso o soneto de Shelley, notável poeta romântico inglês. Eis o texto original e uma tradução.





OZYMANDIAS
I met a traveller from an antique land
Who said:—Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. Near them on the sand,
Half sunk, a shatter'd visage lies, whose frown
And wrinkled lip and sneer of cold command
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamp'd on these lifeless things,
The hand that mock'd them and the heart that fed.
And on the pedestal these words appear:
"My name is Ozymandias, king of kings:
Look on my works, ye mighty, and despair!"
Nothing beside remains: round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare,
The lone and level sands stretch far away.


OZYMANDIAS
Eu encontrei um viajante de uma antiga terra
Que disse:—Duas imensas e destroncadas pernas de pedra
Erguem-se no deserto. Perto delas na areia
Meio enterrada, jaz uma viseira despedaçada, cuja fronte
E lábio enrugado e sorriso de frio comando
Dizem que seu escultor bem suas paixões leu
Que ainda sobrevivem, estampadas nessas coisas inertes,
A mão que os escarneceu e o coração que os alimentou.
E no pedestal aparecem estas palavras:
"Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:
Contemplem as minhas obras, ó poderosos, e desesperai-vos!"
Nada mais resta: em redor a decadência
Daquele destroço colossal, sem limite e vazio
As areias solitárias e planas espalham-se para longe.


Repara-se que o que resta daquele que se proclama rei dos reis é apenas a inscrição, tudo o resto são destroços.


  • No mesmo trecho surge, da parte do arquitecto real, algo que surge num poema de Horácio (65-8 a.C) e é como que um estímulo ao culto do prazer devido ao facto de a vida ser demasiado breve: o “carpe diem” (Goza o momento que passa.)

Diz ele: “A minha regra de vida é «Aproveita o dia feliz e esquece os trabalhosos.»”

  • Outro ponto interessante é a explicação da posição das figuras e das regras para a sua gravação na pedra, assim como a questão da autoria:

“- Por todos estes motivos a figura humana representada nos baixos-relevos ou em pintura tem de conter todos os elementos essenciais: cabeça representada de perfil, os ombros e a metade superior do torso vistos de frente com ambos os braços representados, enquanto a parte inferior do torso e os membros são representados de perfil. Deste modo abraçamos no mesmo momento e de muitos lados a imagem total do homem. Observai o olho. Ainda que a cabeça seja representada de perfil, o olho é visto de frente, ou seja na sua totalidade, pois que o olho é um órgão essencial da natureza, por si mesmo mágica.” (p.149)


“E por que motivo os artistas não deixam o seu nome como testemunho do que criaram?”


“- Nós nada criamos. Nós ‘animamos’ simplesmente.” (p.149)

  • Há também um quadro importante sobre a organização de uma parada militar: armas, organização, magnificência… (p.181)

  • Também é motivo de interesse toda a mitologia disseminada ao longo da obra que mostra quanto as mitologias têm de comum, nomeadamente a luta entre o bem e o mal, Osíris e Seth; o julgamento da alma e a sua ascensão aos céus, ainda que aqui aparentemente apenas os privilegiados a tal teriam direito.

O livro começa com a situação da sociedade egípcia pouco antes da morte de Neferkara Pepi e quase de imediato entra numa longa analepse para nos contar a história da vida do soberano. A actualidade é retomada perto do fim com os eventos que se seguem à morte do rei e a queda subsequente de toda a sociedade na mais execrável degradação.

Acaba, no entanto, com uma visão de novos tempos áureos, sendo encarregado de salvar os símbolos do saber e as relíquias da fé um dos poucos homens que se revelou íntegro, embora ironicamente através de toda a história os que desempenham a sua profissão – Grande Tesoureiro – tenham sido frequentemente os mais corruptos.

Nota: O livro apresenta muitas gralhas e até alguns problemas com a tradução. Tal talvez se explique pelo facto de ser editado e impresso em Espanha.
Este é o quarto livro que leio desta colecção Enigmas da História (NAVARRO, Júlia, A Irmandade do Santo Sudário; GROSSMAN, Lev, O Códice Secreto; GINER, Gonzalo, A Quarta Aliança. Sem demérito para este, todos os outros são melhores.