Notas de algumas leituras, sem pretensões de crítica literária.

Seleção de alguns poemas, com ou sem comentários.


sábado, 26 de dezembro de 2009

A Duas vozes (The Double Tongue), William Golding


Notas sobre o autor:
Prémio Nobel de 1983. Romancista, poeta e dramaturgo britânico, viveu entre 1911 e 1993. Apresenta uma concepção pessimista da natureza humana, dominada pela violência, o medo e a ânsia de poder.
Obra:
O Senhor das Moscas; Os Herdeiros; Queda Livre; A Pirâmide; A Escuridão visível.
Temas / Problemáticas:
Existência de Deus.
Cegueira humana.
A aspiração política e suas consequências. (Ânsia de poder)
Desmistificação dos oráculos.
Narrador: Autodiegético. Arieka narra a sua história, incluindo uma longa analepse.
(Relações entre as) Personagens:
Arieka – Sacerdotisa do deus Apolo, Pítia / Oráculo desde tenra idade.
Demétria – mãe de Arieka (Figurante)
Iónides Pisistrátides – Sacerdote de Apolo e encarregado geral da Fundação que gere o santuário de Delfos.
Estrutura:
A história é narrada cronologicamente mas com recursos a uma longa analepse na parte inicial, para contar a história da infância e juventude da protagonista, Arieka. Há também a afirmação de que falta um trecho do manuscrito (fim do cap. IV), quer por uma questão de necessidade de não incluir informação que poderia ser esperada, pois a presente história tem um editor, uma vez que é publicada postumamente a partir de esboços do autor.
Referências histórico-temporais: Num tempo em que a Grécia estava já sobre o domínio dos romanos, mas antes da ascensão de Júlio César, uma vez que é uma das perguntas que é feita à Pítia.
Resumo: Uma jovem grega é escolhida para exercer o cargo de oráculo do templo de Delfos. Deveria ter passado por uma longa aprendizagem até estar pronta para exercer a arte devinatória, mas a morte da mais velha das Pítias, seguido da morte inesperada da segunda Senhora, faz qom que ela tenha de exercer a função para que fora escolhida pelo Sacerdote de Apolo, muito jovem ainda.

Recursos de estilo e linguagem predominantes
A linguagem é bastante simples, corrente e às vezes mesmo familiar. Nota-se alguma adjectivação expressiva: v.g. Era esguio, irrequieto e macilento. (p.25); «Houve uma vez em que examinei o medo. Era redondo, maciço e pesado…» (p. 72). Muito discurso directo, e interrogações. Algumas enumerações: v.g., «Tudo por um ponto, um epigrama, um paradoxo, um bom apotegma… » (p. 41). Ocasionalmente um quiasmo: «Havia qualquer coisa, realmente uma coisa qualquer.» (p.45). Eufemismo: «Estou em crer, porém, que dentro de um mês podemos ver a primeira fascinante borboleta de primavera, há sempre umas quantas precoces» (=turista) (p. 69).
Apreciação / Reflexão:
Interessante:
«–Latim – disse Iónides. – uma língua com demasiada gramática e nenhuma literatura.» (p. 69).
«Os Hebreus, por exemplo, e os Romanos. Os seus funcionários públicos, ou pelo menos uma boa parte deles, nunca praticam nem aceitam subornos. Muitas vezes até um homem rico é condenado pelos tribunais. É muito frequente um pobre sair em liberdade. Não vêem que onde todos os homens aceitam subornos e os praticam, ninguém o faz! (p.70)
«A retaguarda de uma multidão […] é onde se pode analisar um pouco a verdadeira natureza de uma relação internacional.» (p. 70)
«Tudo em Roma é tirado de vós, os Gregos, excepto, infelizmente, as coisas que os tornam vossos senhores.» (p. 107).
«…e descobriram uma cabeça de mulher decepada havia pouco, ainda a sangrar. O local ainda se chama Capitólio, o que significa o lugar da cabeça, não é verdade?» (p. 106).
«Mas eu cheguei à conclusão de que as pessoas preferem ser governadas por um bandido seu, por mais duro que o seu domínio seja, a sê-lo por um governante bom e justo que seja estrangeiro.» (p.110).

Glossário
Apotropaico (p. 76) – sinal para afastar o mal (?)
Hexâmetro (p.78) – Verso grego de seis pés.
Númico (p. 99) – Segundo o próprio livro, fantasmal (sem verbete no dicionário).

O ÚLTIMO SUSPIRO DO MOURO, Salman Rushdie


Este não é propriamente um texto de análise, é mais um género de notas soltas.

Depois de Os Versículos Satânicos, Rushdie retoma a problemática religiosa, através da história de uma família indiana com aspirações a ascendência ilustre: Vasco da Gama através de Aurora e do lado de Abraham, através de Morais Zogoiby, seu filho, o sultão Boabdil. Último de Granada; facto que dá nome ao livro, pois Morais era conhecido por Mouro. Ao longo da obra vai haver uma sobreposição entre o mouro Morais e o mouro Boabdil, aliás como em vários outros domínios, nomeadamente em relação a quadros que são pintados por cima de outros quadros: palimpsestos.
A história é narrada por Morais Zogoiby, prisioneiro de um enamorado, amante, de sua mãe, que conta a saga familiar à maneira de Xerazade para prolongar a sua vida.
O livro é um repositório invulgar de cultura- Dá-nos uma imagem caleidoscópica da Índia do séc. XX, por onde perpassa a pintura, o cinema, a literatura, a crítica severa das relações humanas: depravação, degradação… ocasionalmente de moralidade duvidosa.
Transcrevo um excerto que surpreendentemente me parece resumir a obra e o registo em que é contada a história: “…tom mítico-romântico em que se acotovelam a história, a família, a política e a fantasia, como uma multidão numa estação de comboios…”.
Por vezes as palavras do livro são admiráveis. Morais, o Mouro, conta a sua própria história interpelando esporadicamente o leitor, mas lá aparecem reflexões que serão forçosamente de uma entidade superior a um narrador autodiegético: “É o velho problema dos biógrafos: mesmo quando as pessoas estão a contar a história da sua vida, estão invariavelmente a embelezar os factos, a reescrever a história ou pura e simplesmente a inventar.” (p.169). Lembrando ao leitor que o que lê é ficção e talvez, como é sabido, que frequentemente a realidade supera a ficção.
A obra versa também sobre o amor. A esse respeito retive uma frase lapidar: “Quando um engano de coração se revela como sendo uma loucura, achamo-nos parvos e perguntamos à família e aos amigos porque é que não intervieram, defendendo-nos de nós próprios. Mas nós próprios somos um inimigo de quem ninguém nos pode defender” (p.196).
A sociedade actual impõe, a muitos de nós, estilos de vida a que dificilmente podemos fugir. Alguns superam essa tirania dedicando-se a actividades desviantes, a promover conflitos, a lutar contra moinhos de vento… outros despersonalizam-se totalmente, sendo exactamente o que os seus superiores, patrões, famílias querem que sejam. Aprecie-se esta pérola: “Estão todos mortos, tanto os velhos como os novos, mas como ainda recebem reformas e mesadas recusam-se a deixar-se enterrar. Andam por aí, rua abaixo rua acima, comem, bebem e falam das vidas horríveis que levam…” “…tinham-se tornado, por vontade própria, em autómatos humanos. Podiam simular a vida humana, mas já não eram capazes de vivê-la” (p.470-471 e 481).
Para acabar, uma referência a um dos muitos aspectos jocosos da obra, pejada de ironia: “…torturas – a privação do sono, disseção sem anestesia, cócegas prolongadas nas axilas, malaguetas metidas no ânus, surperexposição a intermináveis espectáculos de ópera chinesa.” (sublinhado meu).
A leitura das cerca de 500 páginas leva o seu tempo, mas vale a pena!

A METAMORFOSE, Franz Kafka (1883-1924)


Um jovem acorda uma manhã transformado num monstro, um insecto viscoso e achatado de pernas curtas, julgando-se vítima de uma alucinação. A família mostra-se horrorizada perante tal aberração, ou talvez por ter perdido a sua fonte de rendimento, pois era ele que provia ao sustento de todos lá em casa. O pai, a mãe e a irmã vêem-se forçados a trabalhar, a segunda em casa e os outros fora. Dão-lhe cada vez menos atenção e desejam a sua morte. Quando tal acontece desfazem-se do cadáver e exultam.
É interessante constatar que o jovem não perde nada da sua condição de humano, excepto a forma. Os seus sentimentos e pensamentos mantêm-se humanos, sendo mesmo a mais humana das personagens: faz esforços impressionantes para dominar o seu novo corpo; respeita e teme o pai; mostra-se desolado por já não poder sustentar a família; esconde-se para não causar repugnância à família e hóspedes; faz o favor de morrer quando a sua morte é desejada.
O jovem manteve-se igual a si próprio na sua nova aparência, o que é muito diferente de histórias do género fantástico em que homens se transformam em animais selvagens e violentos, perdendo completamente o controlo da sua identidade. São frequentes as transformações de homens em lobos e de mulheres em felinos.
É ainda impressionante que a metamorfose seja aceite sem ser questionada por todos os intervenientes, sem que consultem os representantes da sabedoria, padres, médicos…, para validar a possibilidade de uma tal transformação. De facto «a ciência destrói o mistério»!

Certamente que a nível filosófico esta história terá uma leitura bem diferente.


KAFKA, Franz, A Metamorfose, 2.ª ed., Edições Quasi

O VELHO E O MAR


Vi hoje na televisão que três pescadores pescaram um espadim azul gigante, 418 kg. Feito notável que demorou sete horas a concretizar, usando tecnologia de pesca desportiva já muito apurada.
Lembrei-me então de O Velho e o Mar de Ernest Hemingway. É a história de um velho pescador a quem, há já algum tempo, o azar persegue: não pesca um peixe grande há muito tempo e, por isso, perdeu o seu ajudante, que, no entanto, ainda o ajuda, mas não no barco, apoia-o em terra.
Um dia afasta-se de Havana mais do que qualquer outro e consegue ferrar um peixe com quem trava uma luta longa e respeitosa mas determinada. O peixe arrasta-o durante dias. O velho vai lutando para não perder o peixe. Sobrevive de pequenos peixes que vai conseguindo pescar com as outras linhas que levava preparadas no barco.
Finalmente consegue vencer a resistência do grande peixe, depois de se superar várias vezes, quer na incrível resistência física, conseguindo manter a pressão da linha dia e noite, quer moralmente, sobrevivendo ao desânimo e ao apelo à desistência. Prende então o enorme peixe, que é mais comprido que o barco.
Inicia então a viagem de regresso, larga uma pequena vela, que o ajuda a rumar ao porto de Havana. Não sabe onde está, mas sabe como o há-de atingir, pois conhece as correntes e o vento e, quando a noite cair, verá com certeza o halo de luz da cidade.
Infelizmente está muito longe e a viagem dura muitas horas. Surge um tubarão. Consegue matar este primeiro, mas com isso acaba por perder o seu único arpão. O tubarão afunda-se no oceano mas avolumou o rasto deixado pelo peixe. Outros surgem. Com os parcos recursos que possui consegue matar alguns, mas é uma batalha perdida. O peixe cada vez vai ficando mais destroçado, chamando mais tubarões e ele cada vez mais debilitado e sem nada com que os repelir.
Consegue chegar a Havana quando todos dormem. Exausto arrasta o barco para a praia e a si próprio para a cabana onde vive. Na praia ficou o enorme espadarte, mas é apenas cabeça e cauda. Quando acorda com o rapaz, seu ajudante, à cabeceira da tarimba forrada de jornais, assume com resignação a sua perda e o seu sofrimento.
Faz-me pensar agora, um pouco longe dos propósitos de Hemingway, que quando um pobre consegue um bocado maior, logo os tubarões lho reclamam. Assim como a resignação com que nós, hoje em dia, aceitamos toda a violência que sobre a nossa e outras classes têm recaído.


(A imagem acima encontra-se em http://www.bestiario.com.br/6_arquivos/velho%20mar.jpg)